São Paulo - 1966
- Boa noite. Você vem sempre aqui?
- Às vezes. Desculpe mas... eu o conheço?
- Não, você não me conhece senhorita. Mas há de concordar que a Rua Augusta a esta hora não é lugar para alguém da sua idade. Posso ver seu documentos?
- Desculpe, estou desprevenida. Deixei a bolsa no hotel. E acredite, não sou tão indefesa quanto pareço. Mesmo assim, obrigada pela dica, eu já vou indo.
- Acho que não fui claro, senhorita. - Ele remexeu nos bolsos do paletó. - Apresente-me seus documentos! - Ele tirou um maço de cigarros Hilton do bolso esquerdo e um isqueiro. - E você não vai a lugar algum enquanto eu não disser que você vai... - ele acendeu um cigarro.
- Ou talvez eu não tenha sido clara. Não sou da cidade e definitivamente não estou em busca de confusão. Agora se me permite, ainda tenho que passar no mercado antes de voltar para o hotel. Estou com fome e tenho que esperar uma ligação. Ah, mais uma coisinha, cigarros fazem mal a saúde, não devia fumar isso. - Ela virou de costas e saiu andando enquanto dizia a última frase. No entanto,ela logo escutou um barulho metálico.
- Não me obrigue a utilizar isso, senhorita. Não gostaria de ver o sangue de alguém tão bonita. Vire-se e me acompanhe... - Ele se aproximou. - Você irá me acompanhar até a delegacia e dar algumas resp...
Ela escutou o barulho de uma pancada que silenciou o sujeito. Depois, falou uma voz gritada e cheia de tensão:
- Não tente nada seu maldito porco capitalista. Você está bem, pequena?
- Com certeza não era isso que esperava quando cheguei aqui, mas estou bem sim. Obrigada. Quem é você? Alias, quem é ele? Eu realmente estou confusa...
- Meu nome é Raul. - Ele se abaixou e pegou a arma da mão do homem caído. - Ele é um maldito homem do governo. Venha, vamos sair daqui antes que alguém nos veja. - Raul seguiu fazendo sinal para que ela viesse. - Ele usava calças boca de sino marrons escuras uma camiseta preta um pouco apertada e tem um cabelo black power baixo. - Eu não sei o que ele queria contigo, mas eles andam procurando os líderes de movimentos revolucionários. Você não vem, pequena?
- Ah, sim... Eu... O que esse cara poderia querer comigo? Bah, nem sei direito o que vim fazer aqui. Mas, pra onde vamos? - Ela colocou as mãos nos bolsos da capa roxa que lhe cobria até os pés e baixou a cabeça olhando pro corpo no chão,sem saber se respirava. Raul espirava confiança, então ela decidiu segui-lo.
- Bem, eu nem perguntei seu nome companheira. - Raul riu. - Mas sem pressa, conversaremos melhor enquanto tomamos alguma coisa ali no Bar das Putas, é só descermos aqui na Consolação.
Eles tomaram a Avenida Paulista, na esquina com a Rua Augusta e seguem para o fim dela, mantendo-se juntos as paredes dos prédios e evitando os demais transeuntes. Raul tinha uma barba por fazer, que o envelhecia um pouco, mas olhos de um castanho muito vivo, que mostravam muita confiança e muitos sonhos. Ela pensou que ele teria não mais de que vinte e cinco, talvez vinte e sete anos. Ele trazia nas costas uma mochila velha e gasta.
- Meu nome é Viviane, normalmente me chamam de "V". - Ela disse finalmente. - Vim de Porto Alegre, mas afinal, o que está acontecendo nessa cidade? Tudo bem que a gente sempre sabe que o pessoal do governo anda atrás dos companheiros, mas acabei de chegar, o cara não poderia ter nada contra mim.
A capa dela estava bastante amassada principalmente nas costas, sinais do longo tempo desconfortavelmente sentada. O sapado plataforma preto estava bem lustrado e envernizado, mas dificultava acompanhar o passo ágil de Raul. Viviane tinha o cabelo ruivo extremamente liso, apenas uns poucos fios fora do lugar. Parecia ser do tipo que gostava de manter-se arrumada. Os olhos verdes davam um ar de inocência inocentes, assim como a baixa estatura. Eles seguiram em um passo acelerado, mas sem correr, por cem metros até o fim da Avenida Paulista e começam a descer a Consolação. Neste ponto iniciou-se uma leve garoa fina. Após caminharem por quase dez minutos, eles chegaram até um bar lotado. Ele ficaram numa esquina e um letreiro pintado sobre entrada dizia: "SUJINHO". A maior parte das pessoas estava apertando-se dentro do bar devido à garoa que agora já virou uma chuva leve.
- Venha companheira V, você vai adorar esse lugar. - Raul espremeu-se entre as pessoas que obstruem a porta e mesclou-se à massa de gente lá dentro. Viviane ainda ouviu a voz já meio abafada pelo barulho. - Uns camaradas estão me esperando...
Ela o seguiu, mas o cheiro do amontoado de pessoas suadas e agora molhadas, lhe embrulhou o estômago. Adeus fome que sentira antes. Continuava se perguntando o que estaria fazendo ali. Uma ligação na semana anterior lhe intrigara, um homem falando muito baixo lhe "convocava" a presença. Mas antes que ela pudesse lhe fazer qualquer pergunta, ele desligara. Quem era ele? Como sabia tanto sobre ela? Não podia deixar de pensar nisso. Será que o encontraria ali naquele barzinho estranho?
Quando Raul parou, V esbarrou nele, pois estava muito longe em seus pensamentos. Ele olhou para trás e um sorriso tranquilizador partiu de seus lábios. O rapaz apontou uma mesa no fundo do estabelecimento e falou:
Quando Raul parou, V esbarrou nele, pois estava muito longe em seus pensamentos. Ele olhou para trás e um sorriso tranquilizador partiu de seus lábios. O rapaz apontou uma mesa no fundo do estabelecimento e falou:
- Ali, companheira V, lá estão meus camaradas
Era uma mesa simples para quatro pessoas, onde estavam sentadas seis e outras cinco estavam em pé ao redor interagindo com as pessoas sentadas. O bar estava muito cheio, todas as mesas estavam lotadas, com mais
pessoas do que comportariam e apenas quatro garçons corriam para tentar atender a todos. Alguns quadros decoravam as paredes e tudo é bem simples.
O público era formado por jovens, com roupas casuais e despojadas, como os companheiros de Raul na mesa ao fundo, assim como outro grupo de jovens parecidos em outra mesa. Além deles, muitos homens, em sua maioria de peles morena e traços nordestinos bebiam e conversavam, além de mexerem com as senhoritas que conferiam o apelido do local.
Após se acotovelarem com alguns homens, os dois chegaram até a mesa, sem que V escapasse de olhares e burburinhos nada cavalheirescos.
- Finalmente Raul! Achamos que tinha sido pego, porra! - Virou-se o mais próximo dos camaradas. Era um rapaz de uns vinte e cinco anos, cabelos desgrenhados, camisa aberta, vários cordões no pescoço.
- Foi mal, porra! Estava ajudando alguém com problemas com um dos filhos da puta da máquina de repressão do governo. - Ele não contém uma leve risada.
- Ajudou quem? Algum operário? - Levantou-se uma garota sorridente e animada do meio do grupo.
- Ela... - Raul saiu da frente, deixando Viviane de frente para os onze camaradas.
Com um sorriso tímido e envergonhado, ela disse apenas:
- Olá. - Que saiu abafado, apenas perceptível pelo movimentos dos lábio cuidadosamente pintados e voltou a olhar para baixo. Por um segundo, ninguém falou nada, até que a garota entusiasmada falou:
- Ah...
- Bem V, esses são João, Zeca, Tiago, Robertão - Raul apontou para o que fora o primeiro a falar no começo - e Jorge - referindo-se aos cinco de pé - e esse é o Vavá, Hunguera, Ernesto. Aquele ali no fundo é o Waldemar - que levantou o braço - do lado dele é o Hélio e essa aqui é a Rosa.
Todos fizeram acenos e teceram rápidos cumprimentos. Alguns pareceram mais concentrados no físico da recém-chegada do que na sua pessoa. Jorge e Hunguera pareciam mais concentrados em algo no colo de um deles, que está sendo enrolado e é perceptível o olhar de desconfiança de Rosa.
- Olá para todos. - V disse embora com um sorriso amplo dessa vez.
Ela ainda se sentia estranha com o local e principalmente com o olhar de Rosa. Sente uma certa curiosidade sobre o rolinho no colo de Hunguera, mas como boa atriz, não deixou transparecer, assim como também não era perceptível o desconforto de quem não entendia muito do que estava acontecendo ou o que fazia ali. Ela espera simplesmente causar boa impressão.
- Olá.
- Tudo bom.
- Muito simpática sua amiga, Raul. - Todos fazem um cumprimento ou aceno, menos Rosa.
- Bom simpatia, de qualquer forma venha cá, que estamos atrasados temos umas pendências a resolver. - Robertão puxou Raul para um canto, fazendo sinal para Hélio e Waldemar se aproximarem. Raul vai, embora
pareça querer ficar.
- V? V de que? - Aborda Jorge, que estava mais próximo dela. Era um sujeito de uns vinte e cinco anos como os outros, mais alto. Tinha cabelos cacheados até abaixo dos ombros e vestia uma camiseta branca e jeans
surrados,. - Você não parece ser daqui de Sampa, pequena.
- Não, Jorge, não sou daqui realmente. - Ela disse com um sorriso tímido, ela colocou o cabelo atrás da orelha direita. - Sou de Porto Alegre. Meu nome é Viviane, muito prazer. - Com os olhos, no entanto, ela buscava discretamente por Raul. Tudo era muito estranho, embora me sentisse bem na presença dessas pessoas, tudo acontecia rápido demais. Ela procurava ser simpática. - E você, o que faz?
- Eu sou um doido poeta errante - ele riu. - Eu adoro Poa, como é lindo por do sol às margens do Guaíba. - Jorge pegou o braço de Viviane e a trás para perto da parede. - Vem cá...
Raul parecia realmente ocupado escutando algo que Robertão descrevia para ele, Hélio e Waldemar, mas a todo instante lança um rápido olhar para V. Os outros também passam a discutir outras coisas, ainda que Rosa mantenha-se atenta a Viviane.
Ela apenas aproveitou para se encostar na parede, mesmo com os olhos vagando pelo lugar sem saber pra onde olhar. V sentia as pernas doerem pelo tempo caminhando.
- Infelizmente o Guaíba está cada dia mais poluído. Na verdade eu moro em Viamão, faz parte da grande Porto Alegre, fica a menos de 15 min do centro, mas estudo e trabalho em Poa mesmo. O que esse pessoal costuma fazer alem de salvar moças indefesas?
- A gente discute muita política aqui, planejamos como vamos derrubar os mílicos e fazer a revolução. - Há um tom de ironia na voz de Jorge, seguido de uma leve risadinha. - Claro que isso fica pras nossas cabeças conspiradoras... o Robertão, o Raul, o Hélio e o Waldemar. Somos todos da UNE e sempre nos reunimos aqui. O Robertão quer pegar em armas e tal. O Raul acha q devemos seguir o caminho da discussão. Já eu, bem... Eu quero viajar sabe... - Há um movimento na mesa e Hunguera faz sinal pra Jorge e se levanta, ela e Zeca começam a se dirigir em direção à saída. - E aí, tá afim de relaxar um pouco?
- Bem, não tenho muita opção no momento. Ela riu. - Pra onde vocês vão?
- Bem, dona Viviane, nós vamos aqui atrás fazer uma fumacinha, encontrar um pouco de paz desse mundo doido sabe. Já puxou fumo?
Enquanto Jorge fala os outros já deixam o bar. Ele começa a ir na direção, enquanto aguarda a resposta. Atrás V podia ver que a conversa entre Raul e os outros estava se transformando em uma discussão e que o Robertão estava cada vez mais exaltado. Ela ouvia apenas os trechos mais gritados:
- Você fica trazendo a porra desses merdas que não querem nada com nada...
- Os mílicos vão acabar com a nossa raça desse jeito, é batata. Quem tu pensa que é, eu tenho 8 anos de movimento estudantil sacou, enquanto vocês tavam recebendo talco na bundinha branca, eu tava... e tomando porrada de milico na rua e...
- Viviane? V??? - A voz de Jorge novamente lhe chamou a atenção. - E então? Vamos? Não vai me responder?
-Bem, eu não vou não, agora não. Obrigada, mas vou procurar um lugar pra sentar e ver se como alguma coisa. Eles servem algo comestível por aqui, certo?
- Bom, como você quiser. Eles servem uma "famosissima" porção de repolho com cebola. Eu acho uma merda, mas todo mundo adora. Pede um bife, com arroz e feijão, que é isso é que enche barriga. Deixa eu correr que senão os caras fumam tudo. Qualquer coisa tamos lá atrás... - E Jorge num passo rápido sai do bar.
Quando ela se sentou, percebeu que ia ser difícil conseguir chamar um garçom e que Rosa continuava a encará-la, enquanto a discussão estava cada vez mais quente entre Robertão e Raul.
Viviane procurou se sentar perto de Rosa, afinal se ela estava a encará-la, possivelmente teria um motivo. V pensou que a ultima coisa que queria era criar inimizades. Depois de muito esperar, conseguiu a atenção de um garçom.
- Você costuma comer aqui Rosa? Aconselha alguma coisa?
- Você acha que me engana com esse seu tipinho de sonsa, de... de perdidinha - Rosa falava num tom audível apenas para as duas. - Você pode enganar esses trouxas, mas a mim não engana não... e então ela falou alto para todos ouvirem. - Acho que você pode experimentar o filé à cavalo...
Nesse momento, Robertão derrubou uma cadeira:
- Você se acha muito importante, companheiro Raul. Pois as suas idéias só vão fazer você acabar numa solitária apanhando de mílico, o movimento estudantil tem que ajudar a revolução!
- Eu me nego a ajudar no derramamento de sangue de qualquer um. Que merda Robertão, porra, como pode ser tão cego? Que merda, você não pode ser como eles para derrotá-los, de que serve?
Robertão colocou o dedo na cara de Raul e gritou:
- Se não está com a gente, você não tem nada que fazer aqui!
Hélio e Waldemar entram no meio, enquanto conversavam com Raul e Robertão, mas Raul se virou e fez menção de partir. Rosa se levantou e abraçou Robertão.
- Calma, querido, acho que já devemos ir. Deixa o Raul pra lá...
Raul para a meio caminho da porta e virou-se:
- Vem V, melhor sairmos daqui...
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