- Doutor, o senhor pode salvá-lo? Queres alguma ajuda? Tudo bem com o senhor Garcia, não é mesmo? Diga-me que vai salvá-lo, por favor...
Carmem fazia pergunta atrás de pergunta, sem dar tempo às devidas respostas. Estava tão aflita, angustiada e desesperada que escaparam algumas lágrimas de seus olhos. Só pensava na morte de Garcia, e em como ela viveria carregando nas costas a morte de alguém, pois julgava-se culpada pela situação. Se não tivesse conversado com o senhor Garcia e o convidado a sentar-se com ela... Achava que aquele homem estava lá por sua culpa. Um rapaz tão jovem, esperto e elegante, morrer dessa forma... Carmem jamais iria conseguir viver com tamanho peso.
Felipe continuou debruçado sobre o corpo de Garcia:
- Acho que deve tirá-la daqui Ra.. Hurtado. Ela parece nervosa. Mas fique tranquila, senhorita, seu amigo não corre risco de morte.
- Venha, Carmem - disse o doutor Hurtado pegando-a pelos ombros. - Vamos cuidar desses pés e depois voltamos.
- Pés? Meus pés não importam mais. Eu apenas quero ver o senhor Garcia, preciso me desculpar com ele, dizer que eu não queria nada disso... ó Deus. - Carmem acabou derramando lágrimas enquanto fala. Exausta, faminta, ensanguentada e num estado psicológico horrível, ela apenas queria permanecer perto dele, pois toda aquela culpa não cessaria enquanto soubesse que ele estava lá, sozinho.
Hurtado foi conduzindo-a para longe dali enquanto falava:
- Não se preocupe, senhorita. Se alguém pode salvá-lo é Felipe e ele precisa de calma e silêncio para salvá-lo. Prometo que tão logo ele termine a trarei para junto de seu amado.
Carmem sorriu em meio as suas lágrimas:
- Doutor Hurtado, o senhor Garcia não é meu amado. São questões deveras mais profundas que o próprio amor. É culpa minha que ele tenha sido baleado.E ele é um rapaz tão jovem, elegante. Acharia muito injusto morrer assim... E por culpa minha... Não consigo me conformar com nada disso.. - Carmem pausava sua fala, pois sentia fortes dores nos pés.
O médico interrompeu o movimento dela e a faz sentar-se num longo banco, como os de uma igreja, encostado à parede, próximo à entrada do hospital. Havia um pequeno espaço ali para uma pessoa entre as várias que jaziam deitadas. Muitos eram parentes dos doentes que dormiam ali aguardando por notícias, enquanto outros eram eles próprios pacientes que não tinham onde ser abrigados, mas pacientes de menos prioridade, tomados por febres altas ou pequenos ferimentos que não ofereciam riscos.
De frente para ela, o doutor Hurtado tomou o pé esquerdo na mão e com um movimento delicado e cuidadoso passou a cuidar dos ferimentos. Os pés estavam em carne viva e agora que Carmem parara para lhes dar atenção, doíam bastante. Ele limpou tudo com um pano molhado em um líquido incolor que a cada toque ia deixando seus pés mais dormentes e fazendo a dor diminuir. Depois com uma pinça retirou pequenas pedras que haviam se incrustado na sola e na lateral dos pés. Por fim, ele envolveu ambos os pés em bandagens, que lhe pareceram trapos de algum velho lençol desfiado, dando três voltas em cada. O doutor Hurtado olhou-a sorrindo quando terminou:
- Evite andar, senhorita, e em alguns dias estará novinha em folha. Bem sei que isso será quase impossível visto seu comportamento até aqui. - Ele permitiu-se uma curta risada. - Mas peço que tente evitar. Logo Felipe virá nos chamar, mas gostaria de aproveitar esse momento para perguntar-lhe uma coisa, se não se importares - e antes de qualquer resposta dela - pois vi que és de uma das famílias da aristocracia local...
-Claro, doutor Hurtado, realmente minha família é da aristocracia. - Carmem ficou sem jeito e abaixou a cabeça com um leve sorriso. Enquanto o doutor cuidava de seus pés, tinha o reparado muito, e embora tivesse trabalhado intensamente naquele hospital, ainda se preocupava com ela. Carmem havia feito uma certa amizade com o doutor, apesar de terem se conhecido em tal situação. Acabou tomando grande admiração por aquele médico, que parecia tão dedicado e confiante. - E o que desejas saber sobre eles? - Carmem perguntou aquilo delicadamente,dando um belo sorriso.
Ele baixou os olhos diante de seu sorriso, a feição dele torna-se pesarosa, parecia oprimido por algum grave problema. Aquele médico aparentava cerca de cinquenta anos, ou talvez, fosse o cansaço e o estado atual que o faziam parecer tão velho. Ainda assim era um homem bem articulado, que nitidamente recebera boa educado, embora tivesse as mãos hoje tomadas por calos.
- Bem. Eu vim para essa cidade há quase vinte anos já. Fundei esse hospital com meus alunos, deixamos a Espanha para trás confiando no que nos havia dito o presidente Porfírio Diaz... Bem... Desde lá, muita coisa mudou, o presidente e tudo mais, mas o hospital continua abandonado e não temos conseguido sequer atender as necessidades mais básicas deste povo... - Ele passeou os olhos pelos muitos amontoados que haviam por ali. - Não há remédios, pessoas suficientes... Precisamos desesperadamente de dinheiro! - Ele ergueu os olhos e fixou-os nos dela. - E o motivo pelo qual estou lhe dizendo tudo isso, é que, talvez, você possa interceder junto ao seu tio, conseguir que ele nos ajude...
Carmem olhou o doutor Hurtado com ternura e ao mesmo tempo com tristeza.
- Doutor Hurtado, a minha vida toda eu quis mudar alguma coisa, mesmo tratando-se do meu próprio destino. Em minha família, assim como em tantas outras, e porque não dizer em todas, nós mulheres não somos percebidas. Somos criadas para sermos boas donas de casa e arrumarmos um bom pretendente. Não preciso lhe dizer sobre o desapontamento de meu tio por eu estar aqui esta noite. Não somos educadas para ajudar as pessoas doutor. Gostaria sim, e muito, de ajudá-lo a melhorar esse hospital, mas não posso mentir-lhe, e tão pouco o doutor seria tolo de não perceber, mas como uma moça de família tradicional, dificilmente eu poderia chamar atenção de meu tio com nada que não seja um noivo. Talvez se tivesse nascido homem assim pudesse fazer.
- Suas jovens mãos serão úteis por demais, senhorita. Mas sabe, Carmem, se não conseguirmos dobrar os poderosos a olhar por esse povo, de nada adiantarão nossos esforços. Pensei que talvez... Que você pudesse ter alguma influência junto a seu tio, Don Fernandez.
- Eu posso tentar, com enorme prazer. Não calaria diante de tal problema para todo o povo. Contudo não pense, doutor, que eu ou qualquer outra mulher que não cale tenha muita influência em questões políticas ou financeiras. E o senhor pode estar certo de que isto muito me desagrada.
- Eu bem sei...
Eles ouviram os passos vindos do corredor. Olhando para trás, viram o doutor Felipe vindo e limpando as mãos num pano que estava cor de sangue ressecado.
- Bem, está terminado. Ele vai ficar bem.
Carmem mal disfarçava a imensa vontade de correr e abraçar ao médico.
- Isto é mesmo verdade, doutor? Ele ficará bem? Ó Deus... Doutor Hurtado, obrigada por cuidar tão bem de meus pés, mas podemos continuar nossa conversa depois de ver o senhor Garcia? Eu poderia ir até lá?
- Pode ir - diz Felipe que amparou uma senhora que dormia encostada na parede. - Mas evite movê-lo ou emocioná-lo... Venha dona Maria...
- Vá Carmem. - Concordou Hurtado.
- Mais uma vez agradeço doutor.
Carmem deu um belo sorriso e entrou o corredor correndo, na medida da velocidade que seus pés aguentavam tocar a chão, até a porta do quarto de Garcia. Ali entre as muitas pessoas que tinham partes do corpo faltantes estava ele. Estava deitado ao lado de outro homem mais castigado pela vida e que perdera um braço, os dois dividindo um leito pela falta de espaço. O cheiro de sangue continuava forte, mas nada mais era tão preocupante com o alívio de ver o movimento lento mas constante do peito de Garcia Contreras. Ele estava de bruços e havia um grande lençol amarrado como uma bandagem ao redor do tronco dele.
- Senhor Garcia? - Perguntou delicadamente Carmem, não tendo certeza se ele estava acordado ou dormindo, bem ou mal. Pra ela, o importante é que aquele jovem rapaz, que havia "dado sua vida" por ela, estivesse bem.
Ele permaneceu imóvel ante as palavras vacilantes que deixaram os lábios dela, parecia ainda desacordado.
Carmem ficou de joelhos, ao lado da cama onde ele se encontrava. Queria falar com ele, porém não queria acordá-lo. Ainda pensava que talvez aquele homem nem gostaria de vê la novamente. Ficou ali por algum tempo. Quinze minutos ou uma hora talvez. Não sabia ao certo, apenas sabia que iria esperar ele acordar, pelo menos dizer um muito obrigada.
Uma ansiedade a corroía de mãos dadas com o remorso. Os dedos vacilantes dela ousaram tocá-lo como um afago de desculpas. Encontraram os grossos dedos da mão delicada dele. Ela teve a impressão de que eles tremeram levemente e recuou ante o susto, mas ele não se mexeu e os dedos dela retornaram à mão dele, que fechou-se sobre a de Carmem com um aperto que pedia ajuda, que pedia um consolo. A voz veio do rosto de olhos ainda fechados:
- Qu.. Quem?..
- Senhor Garcia... Sou eu, Carmem... Como se sente? Consegue falar comigo?
- Ca... Carm... Carmem... - a voz era fraca como a de um moribundo. - On.. Onde?.. Estou no céu?.. - Ele disse enfim abrindo os olhos.
-Acalma-se, senhor. Garcia, o senhor está no hospital, alguns médicos e eu lutamos pela sua vida.
Garcia forçava o pescoço para olhar para cima, já que estava de bruços, a cabeça de lado tentava se erguer para vê-la melhor:
- Fi... Fico... Fe... Feliz... Em vê-la...
- Senhor Garcia, por favor, não tente fazer esforço. - Carmem disse abaixando-se junto ao rosto dele. - Fique calmo, eu estarei aqui para tudo o que precisar. - Carmem apertou a mão de Garcia. - Apenas diga-me que me perdoa, por tê-lo metido em tudo isso...
- Pe... Per.. Perdoá-la? Ma.. Mas... Pe... Pe... Pelo... que? - Ele diz olhando nos olhos dela e falando com dificuldade.
- Senhor Garcia, é por culpa minha que está aqui. O senhor foi um cavalheiro, porém foi baleado. Ficarei aqui, cuidando do senhor. - Carmem lhe deu um sorriso e apertou sua mão. - Diga, senhor Garica, pode me perdoar?
A feição dele mudou, como se toda a dor fosse aliviada por um instante, os lábios dele se contorcem tentando sorrir, enquanto um gemido escapa dele. Mas os olhos dele brilham.
- O... Ora... Ma... Mas eu só te... Tenho a a... Agradecer... E... Se... Va... Vai... Fi... Ficar... Aqui... Eu n... Não ia... Que... Querer... Es... Estar em... Ou... Outro lugar...
Carmem deixou correr uma lágrima, pois pra ela aquilo tudo era mágico. Sentia como se tivesse salvado a vida de Garcia, embora ele também tivesse feito por salvar a sua própria. Sentia por ele um sentimento diferente, que ela até então não sabia explicar. Depois das palavras dele, Carmem lhe deu um beijo na face, que tocou o gosto salgado do suor e doce do sangue seco:
-Tudo vai ficar bem, senhor Garcia. Fico feliz por estar melhor. Eu estava tão angustiada com tudo que aconteceu.
Garcia Contreras relaxou com o toque dos lábios dela. O rosto dele pareceu tomado de um alívio, enquanto os olhos se fecharam.
- E... Eu só po... Posso.. Ag... Gradecer...
- Senhor Garcia, tente descansar. Durma um pouco se conseguir. Vou tentar levá-lo a um quarto, achar um outro hospital, ainda não sei, só sei que preciso lhe tirar daqui, não parece um bom lugar para se recuperar - Carmem contemplava os muitos corpos mutilados que Garcia ainda não podia perceber, mesmo dividindo uma maca com um deles. - Também preciso avisar a todos que o senhor está bem. Peço que tenha um pouco de paciência e tente dormir, enquanto providencio tudo o mais rápido possível.
Carmem apertou na mão dele e sorriu novamente. Levantou e saiu lentamente do quarto, continuando a olhar cada vez mais de longe para Garcia. Ela cruzou a porta vendo-o cerrar os olhos e diria até que sorrindo. Ao virar-se para o corredor, viu o doutor Hurtado vindo em sua direção, nas mãos ele trazia um prato e um copo.
- Muito obrigada, doutor Hurtado, obrigada de todo o coração! E agora, o hospital ainda tem muita gente pra ser atendida? Posso ajudá-lo em alguma coisa?
- Vai me ajudar muito, senhorita, se comer essa comida aqui e beber um pouco de água e não ficar doente... - Ele disse sorrindo e estendendo o prato e o copo para ela. - Como está o seu amigo?
(Carmem sorriu pra ele, pegou o copo e o prato antes de responder:
- Ele está bem, graças ao senhor doutor Hurtado. Afinal, quem ensinou o doutor Felipe a salvar vidas, não é? Eu até posso lhe dar essa "ajuda" - Ela disse apontando para a bandeja - Mas apenas se o senhor me acompanhar...
- Fico grato por sua cordialidade e graciosidade, Carmem. Terei o maior prazer em comer com você, mas achei que iria querer ficar de olho no seu amigo.
- Assim que terminarmos darei um jeito de tirá-lo daqui. É muito perigoso,entre tantos doentes, uma infinidade de mazelas. Entendo que não são condições dignas para ninguém doutor, mas o senhor Garcia eu posso tirar daqui e tentar dar-lhe um melhor repouso. Ainda não tenho uma boa ideia do que fazer, mas sei que preciso tirá-lo daqui. Enquanto ele descansa para que eu possa movê-lo, vamos descansar um pouco também, não é doutor? - Carmem deu um belo sorriso para o médico. - Me diga, onde podemos ir?
- Venha. - Hurtado disse enquanto seguiam pelo corredor de volta ao saguão, onde a enfermeira atendente os olhava chegar por trás do balcão. - Minha casa é contígua ao hospital. Felipe e Blanco, meus alunos e colegas estão lá jantando, podemos nos unir a eles. Será um lugar melhor do que aqui no hospital.
- Lúcia, qualquer coisa nos chame. Estamos em casa.
- Sim. Sim, doutor Hurtado. - A enfermeira disse com a voz cansada e rançosa.
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