segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Carmem: 2

Todos estavam aterrorizados e obedeceram o bandido. Garcia e Carlos se olharam antes de deitar ao chão, como se estivessem planejando algo. Carmem percebendo isso cochichou ao ouvido de Garcia:
- Senhor Garcia, não faça nada, eu imploro em nome de Deus! 
O bandido ouviu e tomou o braço de Carmem, fazendo-a se levantar:
- Ora ora o que temos aqui... a filha de um dos tiranos do poder é isso mesmo que eu vejo?? O que será que me impede de matá-la? E matar você também, Carlos ou qualquer um de vocês aqui? Acho melhor calarem-se ou pode ser muito pior!
Paolo segurava o braço de Carmem com força, apertando com as mãos grossas e ásperas de camponês. Ele trabalhara durante muitos anos na fazenda do pai dela e na adolescência envolvera-se com Constanza, mas fora algo frívolo e passageiro como é próprio dos jovens. Mas ninguém nunca soubera que ele tinha relações com os revolucionários do Sul. Muito se falava do General Emiliano Zapata, diziam que era um homem de mais de dois metros de altura e de uma crueldade nunca vista antes, diziam que usava feitiçaria asteca. O povo o amava.
Enquanto Paolo apontava a arma para Carlos e puxava Carmem, os outros bandidos, mais de dez à essa altura, circulavam entre os convidados privando-os de brincos, pulseiras, carteiras, bolsas e tudo o mais que possuísse algum valor e estivesse à vista, enquanto alguns, ainda a cavalo selavam a entrada da igreja.
Ainda assim, Garcia levantou-se abruptamente, agarrando o rifle de Paolo e fazendo-o atirar para o alto.
- Você acha-se homem, seu covarde maldito? - Disse ele enquanto os dois lutavam pela arma. 
No entanto, um disparo de um dos outros bandidos o atingiu nas costas e interrompeu a luta, derrubando Garcia no chão e fazendo Carlos urgir em direção aos bandidos para ajudar o amigo. Mas Paolo foi rápido em por a arma entre eles:
- Mais uma gracinha dessa e ninguém sai vivo daqui...
Carmem olhou indignada para o bandido e gritou:
- Está certo, agora o senhor vai matar a todos? Me mate se quiser, mas não vou deixar o senhor Garcia morrer por uma ignorância de tamanho tão grande. 
Paolo se assustou um pouco, surpreso com a bravura da moça que ele lembrava como uma menina tão delicada. Ela lutou e se soltou, correndo em direção a Garcia, que agonizava no chão.
- Não se preocupe, senhor Garcia, eu vou dar um jeito nisso. Aprendi algo sobre cuidar de feridas.. vi alguns livros.. quero dizer.. ai meu Deus.. eu vou tentar salvá-lo! Acho que o tiro não pegou em cheio - ela dizia apesar de todo aquele sangue - vou cuidar do senhor.
- E pra que você quer salvá-lo? - Riu Paolo. - Um homem fraco como esse.. recebendo atenção da filha de um tirano.. se não fosse mais uma das meretrizes dessa família, talvez até admirasse sua bravura. Você pode tentar Carmencita, mas sei que não podes fazer nada. 
Enquanto isso, os bandidos continuaram pegando os pertences de todos, cada vez enchendo mais os bolsos e seus grandes sacos, que carregavam em pares. Garcia continuava no chão ao lado de Carmem, cada vez mais pálido, enquanto ela desesperadamente lutava pra salvar sua vida.
Carlos olhava a tudo um tanto atônito, por fim, deitando-se de novo no chão. Apenas Carmem, de joelhos ao lado do senhor Garcia Contreras em seu colo, estava erguida enquanto tentava impedir o sangramento ininterrupto do meio das costas do homem. Ele gemia de dor e um pouco de sangue escapava por sua boca.
- Ca.. car.. mem... de..i..xe-me... arrr... vou mo..rrer..
Temendo cada vez pelo pior, Carmem por fim enfiou dois dedos no buraco do tiro, em busca da bala, sabia que precisava removê-la e depois interromper o sangramento.
Já bastante abastecidos, os bandidos começavam a recuar e retirar-se da Igreja um por vez, até que Paolo, por último, ainda apontando a arma falou:
- Obrigado a todos pela colaboração. Espero que quando vier a Revolução eu esteja à frente dos pelotões de fuzilamento para nos encontrarmos uma vez mais! - E virando-se, partiu.
Muitos convidados levantaram-se, enquanto outros permaneciam tremendo de medo deitados. Alguns homens urgiram para a porta, como se agora fossem fazer algo. Carlos correu para Carmem e Garcia. 
- Garcia.. meu amigo.. venha, precisamos levá-lo para o hospital...
Neste exato momento, Carmem trouxe de volta os dedos ensanguentados com o projétil de chumbo amassado, mostrando que conseguiu retirar a bala que estava nas costas de Garcia. 
- Aqui, consegui finalmente! Agora precisamos conter o sangramento e levá-lo ao hospital o mais rápido possível.. - ela disse para Carlos, enquanto já rasgava seu belo vestido, fazendo pedaços de pano para conter o sangramento de Garcia. 
Carlos e mais três outros amigos convidados carregaram Garcia Contreras até um carro e o levam ao Nossa Senhora de Guadalupe, que era perto da igreja. Carmem insistiu em ir junto, mesmo que sua mãe não quisesse que ela se afastasse dali, além de não haver espaço suficiente no carro. Ela resolveu ir de uma forma ou de outra, correndo a caminho do hospital erguendo a saia em trapos que atrapalhava seus movimentos. 
Quando chega à porta do hospital, ela encontra Carlos, na recepção, ele parecia desolado: 
- Ele está sendo cuidado. Mas há pouca esperança, Carmem. Você.. você veio correndo? Seus pés estão horríveis. Venha, venha se sentar..
- Que tragédia, ó Deus. E no dia do seu casamento com Constanza, que horror. Eu espero que ele viva. Garcia não merece morrer, se morrer acharei que foi por minha culpa, rezarei muito por ele!
- Não, não é de ninguém a culpa. - Carlos disse com as mãos nos ombros dela tentando consolá-la. - Ou melhor.. é daqueles malditos bandoleiros, daquele Paolo, eu irei denunciá-los! Irei cobrar uma atitude do prefeito, das autoridades! Eu irei até o presidente se necessário, mas Zapata e seus baderneiros não podem continuar a perpetuar o caos pelo México.
Os outros rapazes continuavam a circular ali pelo hospital Nossa Senhora de Guadalupe, algumas enfermeiras atendiam várias pessoas ali mesmo na recepção tão lotado estava o hospital. Carlos ainda falava:
- Talvez seja melhor que vá para casa, pedirei para Pedro acompanhá-la, esse lugar é muito funesto.
- De maneira nenhuma, Carlos! Você é quem deveria ir embora. Constanza deve estar apavorada, eu não irei sair daqui até receber notícias de Garcia, se necessário até mesmo posso ajudar os enfermeiros daqui, mas não vou deixar Garcia sozinho aqui. 
Enquanto Carmem falava, chegaram alguns homens carregando uma mulher e sua filha pequena, que haviam sido baleadas numa confusão. Vendo que não havia quem pudesse ajudar, Carmem não resistiu a ajudar, fala com as enfermeiras:
- Carlos, eu preciso fazer algo por esses pessoas - ela disse se afastando do noivo da prima. - Se o governo não faz, se a polícia ou qualquer responsável deixa estas pessoas serem baleadas, roubadas, serem mortas, eu posso fazer a minha parte e ajudar, nem que seja ao menos um pouquinho.
Carlos até tentou impedi-la, mas Carmem, mesmo com os pés feridos e com bolhas disse para os homens levarem as duas corredor adentro sem se preocupar com as enfermeiras. Ela vai ajudando a carregar a maca onde estão mãe e filha juntas, enquanto a voz de Carlos se perde atrás dela. Sua mente ainda pensava no pobre senhor Garcia, mas vendo o sangue que saía do ventre da jovem mulher, da mesma idade da sua lhe parecia, ainda que envelhecida pela árdua vida no campo, não podia deixar de ajudar, de sentir-se útil. Seus pés reclamavam, mas a dor sumia ante a preocupação com a pequenina que sangrava pelo ombro, não devia ter mais de 4 anos.
Os carregadores logo adentraram um quarto, o cheiro de sangue ali era intenso, cheiro de sangue velho, misturado ao de urina e vômito. Haviam pelo menos vinte pessoas dentro do quarto, todas pobres e miseráveis. Algumas estavam desacordadas sobre lençóis no chão, enquanto outras se amontoavam gemendo, orando ladainhas cansativas ou chorando. Eram camponeses e Carmem até conhecia alguns de vista.
O calor era o pior de tudo.
Um único homem corria entre elas a socorrê-las. No momento, estava a usar um canivete para cortar a perna esfacelada de um velho.
- Doutor...- disse um dos carregadores para o homem de jaleco marrom-sangue seco, que já fora branco. - Temos mais duas baleadas...
O médico preocupado, impaciente, e até mesmo irritado com tamanha falta de espaço, de medicamentos, e de condições pra receber mais pessoas gritou:
- Sim, sim e qual a novi... - antes de acabar a frase, se deparou com a jovem Carmem, com os pés em estado lastimável, o vestido ensanguentado e rasgado, os cabelos soltos e desgrenhados, sem nenhum resquício do penteado do casamento, com ar de cansaço e preocupação.
- Temos uma jovem solidária tentando nos ajudar a salvar a vida dessa mulher e de sua filha. - Diz o carregador.
O médico, sem muito pensar, deixou-a ajudar.
Carmem estancou o ferimento da menina, e consegue fazer o sangue parar de jorrar, o ferimento era mais leve que o da jovem mulher, que parecia não estancar nunca. Os carregadores foram buscar uma enfermeira, mas logo um deles voltou sem ninguém. Ele mesmo tentou achar a bala para arrancá-la do corpo da pobre miserável, enquanto Carmem, depois de amenizar a dor e o ferimento da menina, caminhava entre os outros pacientes, apertando as mãos de uns, dando consolo a outros. Pegou alguns panos e molhou numa água turva que havia ali, como compressas improvisadas. Ouvia gemidos, lamentos e histórias, porém sempre a pensava em Garcia, onde ele estaria, se estaria ainda vivo. Ela se perguntava se o inferno seria parecido com aquele lugar, enquanto tentava amenizar o sofrimento de todos que estavam ali, bem sabia haverem muitos outros quartos apinhados de gente como aquele, de gente sofrendo.
Carmem assistia o médico que urgia tentando salvar vidas, enquanto a morte se avizinhava para tantos. Ela o viu amputar a perna do velho, extrair a bala da mulher, fazer sangrias para aliviar a pressão, enquanto uma enfermeira que fora trazida enfim pelo outro carregador, uma senhora que parecia uma velha freira, apesar do avental branco, realizava suturas com linhas de roupa e imobilizava membros quebrados. Ela chamava por Carmem para ajudá-la.
No entanto, o tumulto no hospital não cessava e podia-se ver os carregadores e as enfermeiras sempre a trazer novas vítimas, fossem baleadas ou acometidas de mazelas naturais como cólera e gripes severas, até mesmo moléstias profundas sem identificação, mas que lhes arrancavam gritos e suspiros finais. As mãos de Carmem estavam doloridas já e banhadas pelo sangue de outros, assim como seu rasgado vestido, outrora chique e digno de um casamento.
Talvez ela tenha passado ali uma hora ou talvez seis, já não sabia dizer ao certo. Apenas foi desperta daquele purgatório, quando Carlos surgiu à porta. Com ele estavam o pai de Constanza, Dom Fernandez, e Álvaro, o irmão de Carmem, que parecia furioso.
- O que você pensa que está fazendo, Carmem? - Se precipitou a gritar Álvaro, ao que foi contido por Carlos. 
- Acalme-se, Álvaro. Estamos num hospital...
- Obrigado por lembrá-lo disso. - Disse o médico, deixando os pacientes e virando-se para a porta.
- Boa noite, Doutor Hurtado. Eu vim buscar minha incontrolável sobrinha...
- Essa adorável e voluntariosa jovem? - Ele disse arrumando os óculos. Os cabelos do médico eram lisos e ralos, molhados pelo suor, a pele branco-avermelhada típica dos europeus que mudam para a América. O nariz era fino e os traços esguios e sérios. Os olhos pareciam deter mais vida que o resto do corpo, talvez menos apenas que as mãos calejadas.
-Pois é Doutor, voluntária e incontrolável. Vamos Carmem? - dizia o tio calmo, enquanto Álvaro ficava cada vez mais furioso.
-Titio, perdoe me, mas não posso ir. Olhe quantas pessoas aqui morrendo, precisando de ajuda, precisando no mínimo serem ouvidas. O resto do mundo tão preocupado com o dinheiro. Além do mais, se o senhor não se recorda, o senhor Garcia está aqui no hospital, ainda não sei onde, mas com certeza precisando de mim.
Carlos, Álvaro e Dom Fernandes muito insistiram, mas suas vontades não eram tão firmes quanto a de Carmem. Seu tio insistiu em levá-la, mas quando viu que nada a tiraria dali, acabou desistindo da ideia. Enquanto isso, Álvaro não se conformou em saber que a irmã mais nova estava lá, no meio de doenças e doentes, ensanguentada, suada, cansada. Álvaro ainda destilou algumas ameaças sobre a mãe desamparada após tudo que acontecera, enquanto Carmem só tinha tempo para desconhecidos, e sobre o pai deles que estaria a se remexer no túmulo ante tamanho desgosto, afinal não criara uma filha para aquilo. No entanto, Carmem ainda pensava em Garcia. Carmem continuou por ali, por mais algum tempo, ajudando todos que podia. Por fim, não suportando mais a angústia e ansiedade, acabou indo conversar com o médico a respeito de Garcia.
O doutor Hurtado assistiu a tudo sem intervir, continuando a atender os pacientes, mas agradecendo e retribuindo com um simpático sorriso cansado os esforços de Carmem: 
- És uma jovem muito gentil e determinada, senhorita. Precisamos de toda a ajuda possível aqui. Essas pobres almas não tem ninguém... - e os dois juntaram-se uma vez mais às enfermeiras, até que a noite já tivesse corrido tão longe que o calor se dissipara e apenas graças a velas podia se ver alguma coisa.
Com a noite alta, também cessaram de chegar novos pacientes e por fim, quando a exaustão já os dominava, o serviço estava normalizado. Ao menos havia agora tempo para descanso. 
- Venha, senhorita. - Disse o médico. - Vamos beber um pouco de água e comer alguma coisa..
- Eu.. eu.. gostaria de ver alguém se possível. - Falou Carmem com a voz vacilante de cansaço.
- Quem? - Ele disse retirando o jaleco de sobre a roupa tão suja quanto ele.
- Sabe, doutor, na verdade não houve o tempo necessário para relatar de onde surgi, não é mesmo? A história é meio longa, mas aconteceu uma tragédia no casamento de minha prima. Um amigo do noivo, senhor Garcia, acabou levando um tiro, por minha culpa, assim digamos. E foi por tal incidente que agora estou aqui. Eu vim para cuidar do senhor Garcia, mas vendo tantas pessoas precisando de ajuda, não pude conter me em ajudá-las. Enfim, gostaria de saber onde está o senhor Garcia. O doutor não teria como me levar para vê-lo?
O doutor Hurtado após ouvir a tal história bem intrigante, resolveu procurar por Garcia a fim de retribuir um pouco, tudo o que a jovem tivera feito para ajudar tantas pessoas. 
- Claro, senhorita, vamos procurar o seu amigo, quem sabe ele até mesmo já não saiu daqui.
- Espero, doutor, pois eu não sei o que faria se acontecesse algo terrível com ele.
Os dois deixam a sala carregada daquela mortalha da morte, saindo para o corredor e investigando outras salas onde poderia estar Garcia Contreras. 
- Qual foi a gravidade do ferimento, senhorita Carmem?
- Não sei bem ao certo, ele tomou um tiro nas costas, mas, acho que não foi tão profunda a penetração da bala, pois eu consegui tirá-la dele antes de trazê-lo até aqui. Onde o doutor acha que ele possa estar?
- É possível que ele tenha sido operado. Se a bala feriu o pulmão, teremos problemas. Mas se você já a extraiu - e ele a olhou com certo ar de admiração, ainda que envolto pelo cansaço que dominava o rosto dele - creio que não há razão para nos alarmarmos mais. 
Os dois chegam ao saguão do hospital, onde está tudo muito mais calmo do que quando da chegada de Carmem, mas ainda permanecia o cheiro funesto da morte no ar. O doutor Hurtado caminhou até o balcão improvisado da recepção, onde uma mulher sonolenta conferia alguns papéis.
- Lucia, você sabe onde está o senhor Garcia Contreras?
- E teria como saber, Raul? - Respondeu a mulher com ar desolado.
- Por favor, já pedi que não me chame assim. Tem ideia de onde possa estar? É um fino cavalheiro, estava bem vestido, tomou um tiro nas costas e creio que aquela adorável jovem não terá paz enquanto não o vir..
A mulher olhou por trás dele para a jovem rota por um instante. Carmem imaginou ver ciúmes nos olhos dela, mas isso se foi tão rápido quanto a latência que vem dos seus pés. 
- Acho que Felipe estava a operar alguém assim... deve estar no quarto dele...
- Ótimo. Venha, senhorita Carmem. Seu amigo está nas mãos de meu mais inspirado aluno e amigo. - O doutor diz com um sorriso de quem tenta animar as esperanças alheias.
- Doutor Raul, além de médico é professor?
- Fui, senhorita. Fui professor na Universidade de Madri. Mas, por favor, não me chame por Raul, chame-me de doutor Hurtado, esse nome carrega tristes lembranças. - Carmem percebe um tom amargo na voz dele, uma dor latente, mas antes que pudesse fazer a menção de interrogá-lo, o corredor branco que estava atrás do balcão de Lúcia abre-se para uma sala tão ou mais nefasta do que aquela em que ela estivera. Ali haviam muitas pessoas, mas todas tinham partes do corpo faltantes, alguns um braço, outros uma perna, haviam alguns sem olhos, o cheiro de sangue era forte e entre todos aqueles ensanguentados e feridos, um homem travava uma luta pela vida sobre o corpo de outro homem, sobre o corpo de Garcia Contreras.
- Felipe?!? - O homem parou a intervenção e virou-se para você e o doutor Hurtado, logo retornando ao que fazia.
- Diga Raul.. estou ocupado agora..
- Essa é Carmem, ela está aflita com o estado de seu paciente... e já pedi que me chame de Hurtado.

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