sábado, 22 de agosto de 2015

Carmem: 1


Cidade do México, 1918.
- O que acha sobre o casamento?
- Sagrado, sério. No entanto não tão essencial quanto querem nos fazer acreditar.
Ele sorri:
 - Entendo. Eu os acho particularmente chatos, mas não posso negar que a decoração está bem bonita. É convidada da família do noivo ou da noiva?
Ela mexeu a cabeça concordando:
- Realmente a decoração está bastante receptiva. Na realidade, sou parte da família da noiva, e poderia até mesmo dizer infelizmente. Digo isto porque com o enorme número de mulheres na família, os casamentos não param de acontecer. Mas e você? Convidado de quem?
- Sou amigo do noivo. Estudamos direito juntos em Madri. Gosto muito de Carlos e vim da Espanha para o casamento. E se me permite, ainda não conheci a noiva, mas se a beleza for de família, de certo ela deve ser tão linda quanto você. - Ele diz num gracejo, sorrindo.
Ela sorriu discretamente, mas mudou de assunto com o rosto corado:
- Certamente Madri deve ser um ótimo lugar para estudar e viver. Provavelmente as mulheres podem fazer mais que arrumar um bom pretendente com muitas alqueires. Embora muito me interesse por literatura, , aqui no México as famílias são por deveras provincianas. Pensava em estudar nos Estados Unidos, porém por conta deste pensamento retrocesso... O senhor sabe, não é mesmo? Se não sabe, saberá durante sua estadia.
- Que grata surpresa, confesso-te que pensava serem ainda muito provincianos os pais mexicanos e ainda não permitissem que as filhas estudassem e se emancipassem. Sabe como é, mesmo na Espanha, principalmente no interior, muitas mulheres são preparadas apenas para o casamento, em que teria interesses de estudo?
Como comentei, tenho muito interesse por literatura e estudar mais profundamente certas obras literárias me traria grande apreço. Leio tudo que posso, desde romances a livros de medicina. Também gostaria muito de ser professora. Me admiro muito com aquelas crianças aprendendo, e com a dedicação de alguém ensinando. Mas é exatamente assim, por isso mesmo creio eu, ser um sonho não realizável. Todos estão orgulhosos de Constanza por estar se casando com Carlos. Um ótimo partido aos olhos de todos. O senhor poderia imaginar o que diriam sobre uma jovem moça partindo com rumo ao desconhecido sem um marido para o devido suporte? Mesmo com o marido, é uma situação difícil de se imaginar. Em minha visão sonhadora, confesso – Carmem cochichou neste momento. - Mas pra ser sincera, casamento é algo tão sério, faz com que você nunca possa sair do lugar. Literatura nos leva aonde quer que desejemos estar. - Ela suspirou. - Pena que as pessoas não pensem assim por aqui.
Ele se permite um leve toque ajeitando o cabelo dela atrás da orelha. Então, a olha com encanto:
- Quem sabe agora com a promulgação da constituição mexicana pelo General Carranza as coisas mudem. Depois de anos de tirania de Profírio Diaz vocês tem a esperança de um novo começo e talvez você possa ter um começo diferente... conhece a Europa?
Ela retribuiu os olhares com certo receio e timidez:
- Claro. Se livros, palavras e poemas podem ser considerados pelo senhor como forma de conhecimento, talvez sim eu conheça a Europa. - Ela dá um leve sorriso. - Mas ainda não me disseste, como se chamas?
- Seria possível tamanha falta de cortesia de minha parte? - Ele diz ficando um tanto encabulado e corando o rosto pela falta, tirando o chapéu de feltro cinza claro com uma fita preta. - Meu nome é Garcia Contreras... - ele tomou a mão dela e beija-a nas costas fazendo uma leve reverência.
Ela segurou suavemente o vestido branco com detalhes vermelhos e retribuiu a reverência do cavalheiro:
- Muito prazer, senhor Contreras. Me chamo Carmem. Carmem Rúbio. Vieste apenas assistir ao casamento ou pretende passar uns dias?
- Confesso que estou disposto a abusar da hospitalidade de Carlos. A Europa está triste, fruto da Guerra. - Carmem percebeu a melancolia que perpassa a voz dele. - Mas confesso que a cada dia encontro mais encantos no México.. - ele sorri uma vez mais, estendendo-lhe o braço. - Se não me engano aquela é a carruagem que traz a noiva... - disse Garcia olhando para a pista de onde vem a carruagem preta, adornada com flores e puxada por dois belos cavalos brancos. - Penso que devemos entrar.
Com desânimo e timidez, ela respondeu olhando para a carruagem:
- Verdade. O tempo passou rápido, não é? Tens razão devemos entrar... - Carmem deu um sorriso. - Incomodaria o senhor sentar-se comigo?
- E poderia haver algo de mais interessante para se fazer aqui? - Garcia disse simpaticamente, enquanto os dois adentram a nave da Igreja, repleta de flores, seguindo pelo tapete vermelho e passando pelos outros convidados, que também se aglomeravam na entrada ansiosos pela chegada da noiva e agora urgiam para tomar seus lugares.
Garcia e Carmem sentaram-se do lado da família da noiva, na segunda fileira, ao lado de irmão dela, Álvaro, e da esposa dele, Magnólia. A seguir estavam sua irmã, Valência, e o seu irmão caçula, Pablo. Atrás de deles continuavam os tios e primos da sua numerosa família. Quase não couberam todos na lista.
Na primeira fileira estavam a mãe de Carmem ao lado de sua tia Amanda, mãe de Constanza, a noiva, que não continha as lágrimas de felicidade. A mãe de Carmem estava ao lado dela e também não conseguia conter o choro que borrava a maquiagem. A jovem muito bem sabia como sua mãe sempre sonhara com o casamento das filhas.
Carlos estava em pé no altar, muito elegante em suas roupas militares. Desde que retornara da Europa, o pai dele havia conseguido uma promissora carreira militar para o filho querido. Carlos parecia nervoso e inquieto, como se a noiva fosse escapar.
Tão logo sentaram-se, Álvaro olhou para Carmem com o olhar severo de irmão mais velho:
- Onde você estava? Não consegue ficar quieta um minuto? - Magnólia puxou o braço dele:
- Não é hora disso, querido..
A marcha nupcial se iniciou e todos levantaram olhando para a entrada da Igreja.
A noiva entrou deslumbrante, com um vestido de cauda grande, que era segurada por duas belas meninas, filhas de uma prima e confidente. Quando passou ao lado de Carmem, a olhou com um discreto sorriso de nervosismo, acompanhada pelo pai, Dom Fernandes, que caminhava passo a passo lentamente. Após cruzar o tapete vermelho, ele entregou a filha no altar para Carlos, que com um belo sorriso o cumprimentou e pega a mão de sua tão esperada noiva. De repente, a mãe de Carmem lembrou-se dela, porque não a tinha visto ainda. Carmem era muito paciente e talvez até detalhista demais com tudo, por isso havia se atrasado e não tinha chegado à igreja junto com sua mãe. Dona Mercedes, ao virar pra trás à procura de sua filha Carmem, levou um enorme susto ao vê-la ao lado de um rapaz. Porém deu um gracioso sorriso, afinal Carmem não era muito de conversar e fazer novas amizades, muito menos com homens:
- Filha. precisamos conversar mais tarde! - Disse Dona Mercedes, apreciando a novidade, que era ver a filha sentada, ao lado de um jovem rapaz esbelto no casamento de uma sobrinha que era quase uma filha para ela.
-Está bem mamãe, agora não é hora pra isso, vire-se. - Retrucou Carmem que voltou-se para conversar com Garcia. - Mil perdões por meu irmão, ele é sempre assim mesmo.. e quanto à mamãe, está simplesmente achando novidade eu conversar com alguém diferente. Cá entre nós, às vezes, acho que ela pensa que não tenho língua..
Ele sorriu diante do comentário e enlaçou a mão dela sob a dele, virando-se para os noivos.
O padre Eusébio iniciou suas palavras consagrando aquele amor ao Senhor e explanando sobre a origem sagrada do matrimônio. Ele apresentou suas considerações e lembranças da família e da infância dos pombinhos, rememorando suas comunhões, crismas e batizados. Passou rapidamente sobre a felicidade da família e enfim celebrou os votos de união eterna:
- Carlos, você diante deste altar, de nosso senhor Jesus Cristo e da Virgem Santíssima, jura honrar, cuidar, prover e amar Constanza na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nas certezas e nas dúvidas, na mocidade e na velhice, até que a morte os separe?
Carlos olhou para a noiva, os olhos castanhos dele cintilavam fixos aos de Constanza. Alcançou a aliança dourada e trazendo-a até a mão da noiva, enquanto a fazia deslizar pelo dedo: 
- Juro!
- Constanza... - prosseguiu o padre, mas foi interrompido pelo barulho de tiro dado na entrada da porta.
O tiro fez todos olharem para trás. Adentrava a igreja um jovem, que era enamorado por Constanza há muito anos. Carmem apavorada num salto abraçou Garcia se acolhendo em seus braços.
-Senhorita Carmem, tudo bem? - Garcia perguntou assustado, porém feliz por tê-la em seus braços e sentir-se a sua fortaleza.
-Me perdoe senhor Garcia - disse Carmem o soltando levemente, com ar de quem queria continuar ali. - Eu morro de medo de armas, o que está acontecendo afinal?
Enquanto o salão estava em alvoroço, e muitas pessoas dali tentavam sair às pressas, Carlos ficou totalmente indignado com aquele absurdo e tomou a direção do causador da confusão. O recém chegado apontava a arma para o noivo, que vinha em sua direção com Constanza agarrada em seu braço, enquanto gritava:
- Paolo, o que está fazendo aqui? Saia já daqui!!!
- Ah, ele vai sair sim.. - disse Carlos bufando, enquanto os convidados que haviam iniciado um tumulto começam a se aglomerar e observar tentando entender a situação, alguns gritavam palavras para que não se fizesse aquilo na casa de Deus, mas o novo disparo de Paolo acertando o teto silenciou a todos. 
- Vá para o inferno, Constanza, você e seu noivo almofadinha. Eu vim informá-los, meus caros, que vocês estão sendo pilhados de suas posses.. - Quatro outros homens armados entraram pela porta, enquanto muitos mais surgiram à cavalo na escadaria trazendo os jagunços de Dom Fernandes desarmados e sob a mira das espingardas. - Não aguentaremos outra ditadura e uma nova constituição de mentira. Viva Zapata. Viva o povo mexicano! - Ele disparou uma vez mais para o alto, sendo seguido pelos quatro homens e os muito mais lá fora. Depois, abaixou o rifle e apontou para Carlos. - Agora eu agradeceria se todos deitassem no chão e se livrassem de suas jóias e dinheiro...

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