segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Carmem: 4

O céu estava estrelado e a lua crescente, uma brisa fria e refrescante sacudiu os cabelos embaraçados de Carmem. Para ela foi bom respirar um ar sem cheiro de sangue.
Eles dobraram  o rumo ao lado do hospital e ali estava a pequena casa, tão simples quanto a dos demais habitantes que viviam na cidade. Não possuía mais do que quatro cômodos e o teto era do mesmo barro vermelho típico da região. As paredes certamente precisavam de pintura com seu branco cal agora encardido pela poeira.
Passando pela porta, já na sala, havia uma mesa de madeira rústica com quatro cadeiras, duas estavam ocupadas, uma pelo Doutor Felipe e a outra por outro homem. Ele era mais alto e robusto que Felipe, mas da mesma idade, cerca de 30 e poucos anos. Já estava um pouco calvo e tinha a pele levemente morena, com alguns traços mais grossos como os dos árabes, mas bem leves. No todo parecia um espanhol típico com os cabelos pretos e lisos e os olhos amendoados. Ambos devoravam com apetite a comida no prato de barro, à frente deles uma panela e uma jarra.
Ambos os viram chegar. Felipe seguiu comendo após um aceno com os olhos, enquanto o outro, que agora ela reconhecia como um dos enfermeiros que a ajudara no hospital, fez um aceno com a mão.
- Olá senhorita. Sou Blanco, lembra-se? Mais calma? Sente-se por favor. - Ele levantou e puxou a cadeira.
Carmem sorriu para eles:
- Sim, muito obrigada. Doutor Felipe, queria lhe agradecer por ter salvo o senhor Garcia. O senhor é um ótimo médico. Não se incomode comigo, por favor, sente-se. - Ela pegou a cadeira e sentou-se ao lado deles. Estava um pouco tímida, mas aos poucos a conversa a descontraiu.
- Não foi nada... - Felipe disse com a boca cheia e sem parecer dar muita importância.
O Doutor Hurtado sentou-se, por fim, na última cadeira, de fronte para ela. 
- Coma Carmem..
Enquanto Blanco tornava ao prato dele, Raul pegou um que ali estava e começou a se servir.
- Obrigada, doutor Hurtado. Sinceramente, estou mesmo faminta.
Enquanto o doutor Hurtado despejava a mistura de carne, feijão e molho de tomate sobre o prato, Carmem levava as primeiras garfadas da comida à boca. Sentia a leve picância típica dos pratos mexicanos, até pouco ardida para os hábitos alimentares dela. A comida estava saborosa, mesmo estando a carne um pouco dura. Antes mesmo de começar a saciar a fome, todo o prato de comida havia acabado.
Hurtado ainda comia, olhando-a de quando em quando em meio àquele silêncio dos famintos. Blanco bebia água da jarra, enquanto Felipe, de pé, colocava o prato sujo dentro de uma grande tina de madeira, já ocupada por um tanto de louça suja.
Carmem parou de comer, deu uma observada no lugar, que talvez por ter tantos homens que eram tão ocupados, não estava nada organizado. Carmem percebia os olhares do doutor Hurtado, porém apenas sorria. 
- Se os senhores quiserem, posso dar uma ajuda na casa..
- Você não se cansa nunca, Carmem? - Disse o doutor Hurtado rindo e sendo seguido por Blanco, enquanto Felipe simplesmente levantou e saiu dali, pela porta, deixando a casa.
Ali na sala, além da mesa, havia uma cômoda grande de madeira escura com quatro gavetas. Sobre ela haviam alguns porta-retratos e um pequeno vaso com flores já ressecadas. Havia também um banco longo e baixo sobre o qual poderiam sentar três pessoas, encostado á parede, bem como um pequeno quadro na parede oposta à porta da entrada, onde via-se um mar e um belo litoral, com uma cidade ao fundo.
- Coma apenas, pois quando terminar iremos acompanhá-la até sua casa... - Terminou de falar Raul entre as garfadas na comida no prato.
Carmem sorriu e balançou a cabeça: 
- Mas não posso ir para casa... Antes tenho que tomar todas as providências pra tirar o senhor Garcia do hospital, eu não poderia de qualquer forma deixá-lo lá sozinho e ir embora. Quanto à ajuda, ficaria contente em contribuir por aqui, a não ser que prefiram recusar uma jovem solidária - Carmem sorriu para Hurtado novamente.
- Serei obrigado a recusar, senhorita - disse o doutor Hurtado ainda rindo. - Mas Blanco e eu a ajudaremos a levar o senhor Garcia até sua casa, onde de certo ele estará melhor acomodado. Passaremos a lista de remédios que vocês devem comprar para ajudar na recuperação. Quem sabe outro dia você não torna e aí aceitaremos sua ajuda... - Raul terminou de comer o último pedaço de carne, que mastigou com elegância, enquanto Blanco pôs um tanto mais de comida no prato.
Carmem os olhava com admiração e se sentia cada vez mais aturdida e encantada por aquele novo mundo, aquele lugar, onde tão poucas pessoas faziam o máximo de si para ajudar tantas pessoas em estado lamentável. Tudo era tão distante de sua vida mesmo estando ali tão próximo.
 - Doutor Hurtado, eu estava pensando... - Carmem hesitou um pouco, mas resolveu falar. - Eu não tenho um conhecimento muito grande em saúde, medicina... Quer dizer sei de algo que já vi em alguns livros somente, mas tenho uma enorme vontade de ajudar as pessoas por aqui. Quem sabe, vocês não estão precisando de alguém a mais aqui no hospital... - Carmem concluiu num tom de voz baixo e suave, até mesmo trêmulo. Estava com medo da resposta que o simpático doutor pudesse lhe dar. Ou até mesmo da interrupção dos companheiros do doutor, que até o momento tinham se feito indiferentes da presença dela ali ao que lhe parecia.
O doutor Raul Hurtado terminou de mastigar e engolir, sob os olhares interessados não só dela, mas também de Blanco:
- Todos os braços aqui fazem diferença, senhorita. De certo, seria ótimo ter sua ajuda. Mesmo sem ser médica ou enfermeira, certamente teríamos muita utilidade para sua intensa vontade de ajudar. Lúcia poderia treiná-la, não acha Blanco?
- Claro! - Disse Blanco com um sorriso espontâneo. - Eu posso ajudá-la também. Não sou médico também, isso só o doutor aqui e o Felipe. Eu e Lúcia somos enfermeiros. Tem o Ramirez e o Esteban, aqui da vila, que treinamos para nos ajudar como enfermeiros, mas você vai aprender muito mais rápido que eles.
- Mas não quero problemas com sua família, senhorita Carmem. Seu irmão me pareceu um tanto... Ãh... Intempestivo... - Hurtado deixou o garfo sobre o prato vazio.
- Meu irmão... Ah meu irmão! Ele tem o hábito de achar que é por certas horas meu pai. Mesmo que fosse, não haveria de me impedir de ajudar tantas pessoas necessitadas. Minha mãe é quem me importa, doutor Hurtado. - Carmem perdeu o sorriso e o olhou seriamente. - E eu sei que ela não iria se opor ela mesma a auxiliar se soubesse de tudo que vi e vivi hoje aqui.  - Depois se virou para Blanco com um sorriso. - Se o senhor puder me ajudar a aprender isso tudo que não sei, eu ficaria muito grata mesmo, mas, antes de qualquer coisa, preciso tirar o senhor Garcia daqui. Falando nisso... - Ela se voltou para o médico novamente, mas agora com uma certa ironia ao final. - Se o senhor me permitir doutor, eu poderia ir até lá ver como ele está.
- Vá senhorita, tão logo Blanco termine de comer iremos ajudá-la a levar seu amigo para casa. - O doutor Hurtado disse fazendo um leve movimento de cabeça, enquanto estendeu a mão até a jarra e encheu um copo com água.
- Está bem então, se me dão licença, a comida estava ótima, obrigada pelo jantar.
Carmem entrou no hospital com o espírito mais leve, além das forças renovadas pelo alimento. Ainda que tudo ali continuasse desolado como antes, algo nela estava mais preparado para tudo ali, além do novo ânimo de que poderia ajudar a melhorar a vida de todos aqueles necessitados.
O saguão continuava tomado por algumas pessoas que dormiam, enquanto por trás do balcão apenas Lúcia a assistiu chegar. O rosto dela estava pesado pelo sono e pelo cansaço. Ela acompanhou o caminhar de Carmem, enquanto se dirigia para o corredor que se iniciava por trás dela:
- Espero que tenha estado tudo do seu agrado, senhorita Rubio. - Havia certo sarcasmo na voz dela. - E que não tenha se espantado com nosso pequeno circo dos horrores... - E o sarcasmo parecia aumentar a cada palavra.
Carmem não entendeu o intento de Lúcia. 
- Estará do meu agrado quando estas pessoas estiverem melhores, senhorita Lúcia. - Talvez a enfermeira a tratasse assim por Carmem ser de uma rica família, por ciúmes do doutor Hurtado, o simplesmente por estar exausta. No entanto Carmem continuou - E pra mim isso não é um circo de horrores e sim uma coisa desumana. Não costumo observar as pessoas como animais de um circo, afinal se assim o fosse, eu não estaria a madrugada toda tentando salvá-las. 
Carmem resolveu se calar, por que iria querer enfrentar Lúcia? Nem ela mesmo entendia porque a enfermeira a tratava daquela forma. Mesmo assim, Lúcia aprumou-se diante daquelas palavras, fulminando com os olhos:
- És uma jovem muito altruísta, mocinha. - O sarcasmo era suficiente para aquilo não soar como um elogio. 
No mesmo instante, porém, o doutor Felipe emergiu do corredor que levava até o quarto de Garcia Contreras.
- Algum problema, Lúcia?
- Não, Felipe. Estava apenas conversando com a senhorita Rúbio.
Felipe então lançou os olhos indiferentes para a jovem:
- Seu amigo está a esperá-la senhorita.
- Sim, doutor Felipe, estava indo até lá. E o doutor Hurtado já está no hospital? - Carmem falou aquilo somente para ver a reação de Lúcia, num tom irônico, sentindo-se cansada de todo aquele joguinho com a enfermeira.
- Achei que ele estava jantando com você.. - Felipe estranhou as palavras dela, enquanto Lúcia lançou um olhar felino para ela. 
A enfermeira virou-se para Felipe falando:
- É melhor fecharmos tudo e irmos descansar.
- Sim, já é hora. Vá logo ver seu amigo, senhorita Carmem Rúbio, pois temos de fechar o hospital.
- Como assim fechar o hospital? E se acontecer algo grave enquanto o hospital estiver fechado? Doutor Felipe, o doutor Hurtado pediu para que eu o esperasse. - Carmem novamente sorriu para Lúcia com um ar desafiador.
- Irão nos procurar em casa e reabriremos se algo ocorrer. - Disse Lúcia com a petulância de quem sabe o que diz.
- Precisamos descansar, senhorita Rúbio e não podemos deixar os pacientes à mercê de quem quiser entrar. Mas se vai esperar pelo doutor Hurtado, creio que eu posso me retirar e vocês cuidam de fechar tudo.
- Mas Felipe... - Disse Lúcia com o receio de quem ficará só, embora Felipe não tenha dado importância e sem nem mesmo olhar para elas, saiu dali.
Carmem ouviu a voz de Hurtado dizendo o nome dele e logo em seguida o médico e Blanco apareceram 
- Pronta Carmem? Seu amigo está pronto?
- Eu estava o aguardando, doutor Hurtado. Creio que o senhor e senhor Blanco vão comigo até lá? O doutor Felipe mandou Lúcia fechar o hospital.
- Felipe está um pouco cansado, mas realmente já é hora de fecharmos. Vamos logo ao encontro do seu amigo. Lúcia, você pode começar a fechar tudo...
- Sim senhor, doutor... - Lúcia disse passando por ele com um nítido tom de irritação na voz.
O doutor Hurtado não pareceu ter se apercebido e seguiu em direção ao corredor que levava ao quarto de Garcia Contreras, sendo seguido por Blanco, que deu uma olhada para trás vendo Lúcia passar, mas ainda assim seguiu. Carmem sorriu, balançou a cabeça e caminhou atrás de Blanco, lembrado-se agora, de que o encantador senhor Garcia estava lá, correndo sérios riscos de infecções ficando por ali. Eles seguiram pelo corredor e logo estavam novamente diante de. Garcia, ali prostrado entre toda aquela gente moribunda.
Blanco e Hurtado pegaram uma padiola e, com cuidado, passaram-no para ela, enquanto Carmem segurava a cabeça do desacordado amigo de Carlos. O pano branco amarronzado de sangue ressecado, afundou com o peso dele e tanto Blanco quanto Hurtado fizeram bastante força. 
- Nossa! Como é pesado! - Blanco disse enquanto eles iam saindo para o corredor.
- Vamos logo... - Disse Hurtado, fazendo careta de força.
A conversa incomodou alguns, mas ninguém reclamou enquanto eles logo saíam dali. Logo chegaram ao saguão do hospital e dali para fora, onde apenas a noite cobria suas cabeças. O caminho até a fazenda onde Carmem morava era longo, mas a casa da cidade ficava logo ali, a três prédios da Igreja.
Carmem pensou um pouco e achou melhor ir até a casa, pelo menos por aquela noite. No outro dia, pela manhã, pediria para o seu irmão ou Carlos irem até lá buscar o senhor Garcia.
- Doutor Hurtado, vamos levá-lo para uma casa aqui perto, está bem? Assim não precisamos carregá-lo até a fazenda, afinal de contas, isso seria um tanto complicado.
Eles puseram-se a atravessar as ruas empoeiradas e sinuosas da Cidade do México, que estavam desertas àquela hora, atravessando a praça da Igreja e finalmente, com os médicos já exauridos, chegaram ao portão de ferro da grande mansão. Dois homens montavam vigília ali, escorados no muro e apoiados em suas espingardas. Carmem logo reconheceu Esteban e Juan, dois dos funcionários de seu tio Fernandez Rúbio. Como a maioria deles, eram rudes, mal-cheirosos e sem educação, apenas capangas broncos que pela robustez serviam de seguranças.
- Boa noite, dona Carmem... - Disse Juan, enquanto Esteban apenas tirou o largo chapéu e fez um cumprimento movendo a cabeça. - Doutores...
- Podem nos ajudar aqui, senhores? - Hurtado não escondia que estava esgotado pelo peso.
- Claro! - Disse Juan pegando a padiola de Hurtado, enquanto Blanco a entregou a Esteban. - Mas... É que... Tão todos na festa na fazenda... Num tem ninguém aí...
- Sim, homem, eu sei - explicou Carmem - mas está muito tarde para levarmos ele até a fazenda e apenas nós não conseguiríamos fazer isso. Por isso, o senhor Garcia ficará a noite aqui e eu cuidarei dele. E amanhã pela manhã um de vocês vai até a fazenda chamar meu irmão e o senhor Carlos, amigo do senhor Garcia... Agora, ajudem-nos a levá-lo para dentro e deixemos de conversas. - Carmem foi um tanto rude pelo cansaço.
- Sim, senhorita.
Os dois disseram obedientemente entrando pelo portão com a padiola, sendo seguidos por Carmem, Hurtado e Blanco. Eles passaram pela calçada cercada da grama verde e bem cortada do jardim, que apesar das condições desfavoráveis do clima, era de certo a mais verde da Cidade do México. Passavam pelas estátuas bregas que sua tia tanto gostava, de deuses e deusas gregas, que buscavam dar um ar aristocrático ao jardim, mas sendo elas de gesso, apenas destoavam de tudo que havia ali. Haviam ainda algumas frondosas árvores, que durante o dia proporcionavam boa sombra.
Logo, Juan estava pegando o molho de chaves e abrindo a grande porta de madeira do casarão colonial. A casa havia sido uma das primeiras construções da cidade dominada pelos espanhóis, em estilo clássico, e de certo foi a mais suntuosa durante muito tempo. Estava na família de Carmem há pelo menos dez gerações e se hoje carecia um pouco de pintura e de algumas reformas, ainda exibia um esplendor invejável para a maior parte dos que punham os olhos nela.
A porta rangeu ao ser empurrada, enquanto eles entraram pisando o assoalho de madeira. O saguão da casa estava repleto de bustos, tapeçarias e tantas coisas mais, que causava certa confusão aos que não estavam acostumados àquele ambiente, ao contrário de Carmem. Isso piorava na escuridão da noite, onde apenas vários vultos eram visíveis.
Havia a grande escadaria que levava para o andar superior, onde ficavam todos os quartos, nada menos que dezesseis, enquanto o piso térreo, seguindo-se por uma das portas ali presentes, compreendia a cozinha, o pátio, os cômodos dos criados, entre outras coisas. 
- Para onde, senhorita? - Perguntou Juan ainda na escuridão.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Norberto: 1



Cidade do Porto, Portugal - 1512

- Eu financio tua viagem para África, mas quero metade do lucro sobre a venda de escravos!
"Não gosto muito de trabalhar com escravos", pensou Norberto coçando a cabeça. "Ainda mais devendo para alguém, mas se não tem outro jeito":
- Por quanto tempo? - Perguntou Norberto demonstrando interesse.
- Mas que raio de pergunta é esta? Se esta tentando seguir para as Índias levando essa pólvora e armas, pretendes trazer escravos, marfim, não é? E ouro até os Açores e de lá açúcar! Pois quero metade do lucro por
cabeça de negro...
- Tudo bem, amigo, terás metade do lucro sobre os negros sem problemas. Apenas me dê um tempo para arrumar as coisas por aqui se possível. A propósito você virá também ou ficará aqui esperando o retorno?
- Por certo que não, pois tenho meu próprios negócios a tocar. Serei apenas o mecenas de sua empreitada ao mar. Aqui está o contrato, assine ao final. Passe em meu banco amanhã e lhe entregarei o dinheiro...
Norberto leu o contrato atenciosamente procurando o que poderia prejudicá-lo no futuro. Nunca fora de muitas leituras, mas aprendera um vocabulário suficiente para lidar com os negócios. No pergaminho ele leu:
"Por meio deste, os assinantes concordam de vontade própria e por completo por dividir em duas partes iguais, todo e qualquer lucro proveniente da venda de escravos negros africanos pela primeira parte, visando o ressarcimento do investimento da segunda parte.

Assinatura da primeira parte     Testemunha

Assinatura da segunda parte     Testemunha".

Norberto colocou o pergaminho nas costas do imediato Rui e assinou um N estilizado. Depois mandou que seu subalterno assinasse como testemunha, o que obrigou-o a fazer um x no local. O mercador partiu deixando uma das vias do contrato com Norberto e levando a outra consigo.
- E então capitão, quando partiremos?
-Assim que eu arrumar minhas malas. Convoque os vermes do mar. Vou pegar o dinheiro amanhã. Me aguarde nas docas.
Norberto foi para o sobrado de sua família. Não teve descanso no restante do dia com tantas providências a tomar. Deixou tudo ajeitado com seu cunhado para cuidar do sobrado durante sua ausência, bem como já encaminhou provisões e materiais com o crédito de que dispunha.
No dia seguinte, antes que o sol raiasse estava diante do Banco Pereira e Figueira do Porto. Sabia que era arriscado ir só, mas sabia se cuidar. Recebeu a carta de crédito do banco, além de quinhentas coroas. Então, dirigiu-se para as docas, onde o bote o aguardava. Rui sorriu vendo que o chefe não demorara, escarrou e fez sinal para os marujos remarem enquanto soltava a corda.
O capitão pisou no navio com seu pé direito e sentiu a brisa do mar no rosto. Ah, o mar, seu verdadeiro lar. A tripulação o cumprimentou no caminho para sua cabine. Ele arrumou suas coisas, olhou as leituras astrais nos mapas, tudo estava pronto. Antes que chamasse, no entanto, Rui, entrou na cabine:
O imediato era um sujeito moreno, fruto da união de um marinheiro catalão com uma paixão africana. Era musculoso e alto, sempre usando duas argolas na orelha esquerda e um lenço na cabeça. 
- Senhor, os mantimentos estão checados, os marinheiros estão apostos, o convés está limpo. Tudo está pronto...
Norberto bateu no ombro de Rui e foi ao convés. Ele encheu o pulmão com o ar salgado e disse com convicção:
- Icem as velas, recolham a âncora! Estamos de partida, cães do mar! Vamos para o sul, rumo à fortuna!
A tripulação gritou em uníssono, saudando o mar que os aguardava e o capitão que os liderava. Todos começam a correr numa harmonia perfeita, içando a vela, levantando a âncora e guiando a caravela para as águas do Atlântico, rumo a Cabo Verde, primeira parada antes do continente africano. O vento jogou o navio contra as águas e logo eles já estavam navegando.
- Senhor, há dois homens supervisionando a carga de pólvora, tecidos, cachaça e vinho... Mais um na quilha de vigília, dois para as velas e um ao leme. Devo reportar-me duas vezes ao dia? Ficará em sua cabine? 
-Reporte uma vez ao dia. Estarei em minha cabine apenas. Prefiro vistoriar a tripulação pessoalmente. Arrume alguém para preparar o porão para homens e não para animais, os escravos deverão estar saudáveis ao nosso retorno.
Norberto voltou para a cabine e escreveu as primeiras linhas do diário de bordo e depois saiu para verificar a tripulação. Ele circulou pelo convés e pode ver a animação dos marinheiros, todos homens embrutecidos pela dura vida do mar, mas ao mesmo tempo homens sensíveis a qualquer mudança nesse grande reino de água. Eles puxavam cordas, jogavam para fora a água que invadia a embarcação, içavam as velas. Estavam todos empolgados, era natural no início das viagens, mas o capitão sabia que o tempo traria a saudade da terra firme, como trouxe do mar. Era bom que se mantivessem na rota e tivessem boas cargas com que lucrar,a fim de saciar o desejo por ouro que arrasta os homens ao mar.
Passaram três dias até chegarem ao porto da ilha Madeira, o pequeno arquipélago ao sudoeste de Portugal. Norberto via os negros que trabalhavam nos campos de cana, andando por todos os lados. Muitos trabalhavam
no porto ancorando os navios ou como carregadores. O capitão Norberto mandou ancorar o navio e preparar o bote para ir ao encontro de Alberto, seu contato e aliado nessas terras que o esperava no cais.
-Organize a tripulação, Rui. Certifique que a dispensa seja reabastecida e depois deixe os marinheiros se divertirem. Quero seis homens aqui todo o tempo! - Ele ordenou pegando uma garrafa de vinho de sua cabine e descendo para o primeiro bote.
- Que os ratos do navio devorem meu fígado! Quanto tempo Alberto! - Foi como cumprimentou o velho amigo antes de por a garrafa em cima de uma caixa para poder dar um forte aperto de mão e um tapa nas costas dele. - Vamos nos sentar em algum lugar para desfrutar deste vinho direto do Porto, pois que de certo ambos temos historias para contar.
- Mas que malditos sejam esses ventos que só carregam a pior escória de Portugal para cá! - Alberto retribuiu o abraço com entusiasmo e guiou Norbeto pelo pier em direção aos armazéns. - As coisas andam paradas por aqui, muitos seguem para África. Depois que o velhaco Bartolomeu achou finalmente o fim ao sul da África lá no Cabo das Tormentas onde morreu, tudo parecia que estava a melhorar. Mas ninguém quer saber das terras de Santa Cruz no oeste...

- Com certeza não deve haver de um nada além de árvores por aquelas terras inóspitas, se fosse meu navegador que me levasse a uma terra inútil, eu o deixaria amarrado no mastro central na companhia das gaivotas toda a viagem de volta - debochou Norberto. - O que importa agora é que beberemos agora e iremos atrás de mulheres depois meses no mar pode deixar um homem doido; com sorte podemos encontrar a tripulação e ter uma festa de verdade com muita bebida e muitas mulheres!
- Ora rapaz, pois digo que tenho aqui uma nova mucama que é um encanto. Vem de Angola e suas ancas são largas. Não sei que fogo há nessas negras, mas ele me consome. - Alberto riu, enquanto já brindavam com o vinho. - Mas tomemos essa garrafa e vamos até o bordel. Eles estão com novas raparigas lá.
-Tome cuidado com suas brincadeiras, amigo, pois já temos mulatinhos demais por aí... - Norberto falou aquilo bebendo e sem olhar para a cor da própria pele. Depois enxugou a boca na manga da blusa. - Mas que coisa! Pelo menos esteve junto com uma mulher enquanto estive no mar! Terminemos logo esse vinho e me leve até esse bordel, quero deixar uns bastardos aqui antes de partir para a África!
Os dois gargalharam enquanto desciam a viela estreita em direção ao bordel. A casa das meretrizesl era um pouco mais que um sobrado de parafitas. Era muito simples, com duas dúzias de mulheres, que se não eram as mais belas, ao menos sabiam como fazer um homem gritar de prazer. Os amigos adentraram e pediram por mais bebida para brindar com as messalinas que já vinha recebê-los. Além deles, Norberto viu alguns de seus marinheiros, um outro trabalhador local e um soturno homem, que conversava num canto reservadamente com Ataulfa, a cafetina.

-Olha Alberto, ainda tem gente  que pensa em trabalho aqui - debochou Norberto falando um tanto alto demais e deixando o vinho lhe subir a cabeça. - Ele deve de estar arrumando raparigas para uma festa particular, não é mesmo?
Sem demora, o capitão e o amigo riram. Norberto atirou algumas pacatas sobre a mesa e tomou uma das damas para si. Escolheu uma de seios tão fartos que poderia dormir sobre eles. A noite foi longa e exaustiva. Ele acordou sentindo a dor de cabeça, o gosto rançoso do vinho na boca e despido na cama, ao lado da messalina.

domingo, 13 de setembro de 2015

Carmem: 3

- Doutor, o senhor pode salvá-lo? Queres alguma ajuda? Tudo bem com o senhor Garcia, não é mesmo? Diga-me que vai salvá-lo, por favor...
Carmem fazia pergunta atrás de pergunta, sem dar tempo às devidas respostas. Estava tão aflita, angustiada e desesperada que escaparam algumas lágrimas de seus olhos. Só pensava na morte de Garcia, e em como ela viveria carregando nas costas a morte de alguém, pois julgava-se culpada pela situação. Se não tivesse conversado com o senhor Garcia e o convidado a sentar-se com ela... Achava que aquele homem estava lá por sua culpa. Um rapaz tão jovem, esperto e elegante, morrer dessa forma... Carmem jamais iria conseguir viver com tamanho peso.
Felipe continuou debruçado sobre o corpo de Garcia:
- Acho que deve tirá-la daqui Ra.. Hurtado. Ela parece nervosa. Mas fique tranquila, senhorita, seu amigo não corre risco de morte.
- Venha,  Carmem - disse o doutor Hurtado pegando-a pelos ombros. - Vamos cuidar desses pés e depois voltamos.
- Pés? Meus pés não importam mais. Eu apenas quero ver o senhor Garcia, preciso me desculpar com ele, dizer que eu não queria nada disso... ó Deus. - Carmem acabou derramando lágrimas enquanto fala. Exausta, faminta, ensanguentada e num estado psicológico horrível, ela apenas queria permanecer perto dele, pois toda aquela culpa não cessaria enquanto soubesse que ele estava lá, sozinho.
Hurtado foi conduzindo-a para longe dali enquanto falava: 
- Não se preocupe, senhorita. Se alguém pode salvá-lo é Felipe e ele precisa de calma e silêncio para salvá-lo. Prometo que tão logo ele termine a trarei para junto de seu amado.
Carmem sorriu em meio as suas lágrimas: 
- Doutor Hurtado, o senhor Garcia não é meu amado. São questões deveras mais profundas que o próprio amor. É culpa minha que ele tenha sido baleado.E ele é um rapaz tão jovem, elegante. Acharia muito injusto morrer assim... E por culpa minha... Não consigo me conformar com nada disso.. - Carmem pausava sua fala, pois sentia fortes dores nos pés. 
O médico interrompeu o movimento dela e a faz sentar-se num longo banco, como os de uma igreja, encostado à parede, próximo à entrada do hospital. Havia um pequeno espaço ali para uma pessoa entre as várias que jaziam deitadas. Muitos eram parentes dos doentes que dormiam ali aguardando por notícias, enquanto outros eram eles próprios pacientes que não tinham onde ser abrigados, mas pacientes de menos prioridade, tomados por febres altas ou pequenos ferimentos que não ofereciam riscos.
De frente para ela, o doutor Hurtado tomou o pé esquerdo na mão e com um movimento delicado e cuidadoso passou a cuidar dos ferimentos. Os pés estavam em carne viva e agora que Carmem parara para lhes dar atenção, doíam bastante. Ele limpou tudo com um pano molhado em um líquido incolor que a cada toque ia deixando seus pés mais dormentes e fazendo a dor diminuir. Depois com uma pinça retirou pequenas pedras que haviam se incrustado na sola e na lateral dos pés. Por fim, ele envolveu ambos os pés em bandagens, que lhe pareceram trapos de algum velho lençol desfiado, dando três voltas em cada. O doutor Hurtado olhou-a sorrindo quando terminou:
- Evite andar, senhorita, e em alguns dias estará novinha em folha. Bem sei que isso será quase impossível visto seu comportamento até aqui. - Ele permitiu-se uma curta risada. - Mas peço que tente evitar. Logo Felipe virá nos chamar, mas gostaria de aproveitar esse momento para perguntar-lhe uma coisa, se não se importares - e antes de qualquer resposta dela - pois vi que és de uma das famílias da aristocracia local...
-Claro, doutor Hurtado, realmente minha família é da aristocracia. - Carmem ficou sem jeito e abaixou a cabeça com um leve sorriso. Enquanto o doutor cuidava de seus pés, tinha o reparado muito, e embora tivesse trabalhado intensamente naquele hospital, ainda se preocupava com ela. Carmem havia feito uma certa amizade com o doutor, apesar de terem se conhecido em tal situação. Acabou tomando grande admiração por aquele médico, que parecia tão dedicado e confiante. - E o que desejas saber sobre eles? - Carmem perguntou aquilo delicadamente,dando um belo sorriso.
Ele baixou os olhos diante de seu sorriso, a feição dele torna-se pesarosa, parecia oprimido por algum grave problema. Aquele médico aparentava cerca de cinquenta anos, ou talvez, fosse o cansaço e o estado atual que o faziam parecer tão velho. Ainda assim era um homem bem articulado, que nitidamente recebera boa educado, embora tivesse as mãos hoje tomadas por calos. 
- Bem. Eu vim para essa cidade há quase vinte anos já. Fundei esse hospital com meus alunos, deixamos a Espanha para trás confiando no que nos havia dito o presidente Porfírio Diaz... Bem... Desde lá, muita coisa mudou, o presidente e tudo mais, mas o hospital continua abandonado e não temos conseguido sequer atender as necessidades mais básicas deste povo... - Ele passeou os olhos pelos muitos amontoados que haviam por ali. - Não há remédios, pessoas suficientes... Precisamos desesperadamente de dinheiro! - Ele ergueu os olhos e fixou-os nos dela. - E o motivo pelo qual estou lhe dizendo tudo isso, é que, talvez, você possa interceder junto ao seu tio, conseguir que ele nos ajude...
Carmem olhou o doutor Hurtado com ternura e ao mesmo tempo com tristeza.
- Doutor Hurtado, a minha vida toda eu quis mudar alguma coisa, mesmo tratando-se do meu próprio destino. Em minha família, assim como em tantas outras, e porque não dizer em todas, nós mulheres não somos percebidas. Somos criadas para sermos boas donas de casa e arrumarmos um bom pretendente. Não preciso lhe dizer sobre o desapontamento de meu tio por eu estar aqui esta noite. Não somos educadas para ajudar as pessoas doutor. Gostaria sim, e muito, de ajudá-lo a melhorar esse hospital, mas não posso mentir-lhe, e tão pouco o doutor seria tolo de não perceber, mas como uma moça de família tradicional, dificilmente eu poderia chamar atenção de meu tio com nada que não seja um noivo. Talvez se tivesse nascido homem assim pudesse fazer.
- Suas jovens mãos serão úteis por demais, senhorita. Mas sabe, Carmem, se não conseguirmos dobrar os poderosos a olhar por esse povo, de nada adiantarão nossos esforços. Pensei que talvez... Que você pudesse ter alguma influência junto a seu tio, Don Fernandez.
- Eu posso tentar, com enorme prazer. Não calaria diante de tal problema para todo o povo. Contudo não pense, doutor, que eu ou qualquer outra mulher que não cale tenha muita influência em questões políticas ou financeiras. E o senhor pode estar certo de que isto muito me desagrada.
- Eu bem sei...
Eles ouviram os passos vindos do corredor. Olhando para trás, viram o doutor Felipe vindo e limpando as mãos num pano que estava cor de sangue ressecado. 
- Bem, está terminado. Ele vai ficar bem.
Carmem mal disfarçava a imensa vontade de correr e abraçar ao médico.
- Isto é mesmo verdade, doutor? Ele ficará bem? Ó Deus... Doutor Hurtado, obrigada por cuidar tão bem de meus pés, mas podemos continuar nossa conversa depois de ver o senhor Garcia? Eu poderia ir até lá?
- Pode ir - diz Felipe que amparou uma senhora que dormia encostada na parede. - Mas evite movê-lo ou emocioná-lo... Venha dona Maria...
- Vá Carmem. - Concordou Hurtado.
- Mais uma vez agradeço doutor.
Carmem deu um belo sorriso e entrou o corredor correndo, na medida da velocidade que seus pés aguentavam tocar a chão, até a porta do quarto de Garcia. Ali entre as muitas pessoas que tinham partes do corpo faltantes estava ele. Estava deitado ao lado de outro homem mais castigado pela vida e que perdera um braço, os dois dividindo um leito pela falta de espaço. O cheiro de sangue continuava forte, mas nada mais era tão preocupante com o alívio de ver o movimento lento mas constante do peito de Garcia Contreras. Ele estava de bruços e havia um grande lençol amarrado como uma bandagem ao redor do tronco dele.
- Senhor Garcia? - Perguntou delicadamente Carmem, não tendo certeza se ele estava acordado ou dormindo, bem ou mal. Pra ela, o importante é que aquele jovem rapaz, que havia "dado sua vida" por ela, estivesse bem.
Ele permaneceu imóvel ante as palavras vacilantes que deixaram os lábios dela, parecia ainda desacordado.
Carmem ficou de joelhos, ao lado da cama onde ele se encontrava. Queria falar com ele, porém não queria acordá-lo. Ainda pensava que talvez aquele homem nem gostaria de vê la novamente. Ficou ali por algum tempo. Quinze minutos ou uma hora talvez. Não sabia ao certo, apenas sabia que iria esperar ele acordar, pelo menos dizer um muito obrigada.
Uma ansiedade a corroía de mãos dadas com o remorso. Os dedos vacilantes dela ousaram tocá-lo como um afago de desculpas. Encontraram os grossos dedos da mão delicada dele. Ela teve a impressão de que eles tremeram levemente e recuou ante o susto, mas ele não se mexeu e os dedos dela retornaram à mão dele, que fechou-se sobre a de Carmem com um aperto que pedia ajuda, que pedia um consolo. A voz veio do rosto de olhos ainda fechados: 
- Qu.. Quem?..
- Senhor Garcia... Sou eu, Carmem... Como se sente? Consegue falar comigo?
- Ca... Carm... Carmem... - a voz era fraca como a de um moribundo. - On.. Onde?.. Estou no céu?.. - Ele disse enfim abrindo os olhos.
-Acalma-se, senhor. Garcia, o senhor está no hospital, alguns médicos e eu lutamos pela sua vida.
Garcia forçava o pescoço para olhar para cima, já que estava de bruços, a cabeça de lado tentava se erguer para vê-la melhor: 
- Fi... Fico... Fe... Feliz... Em vê-la...
- Senhor Garcia, por favor, não tente fazer esforço. - Carmem disse abaixando-se junto ao rosto dele. - Fique calmo, eu estarei aqui para tudo o que precisar. - Carmem apertou a mão de Garcia. - Apenas diga-me que me perdoa, por tê-lo metido em tudo isso... 
- Pe... Per.. Perdoá-la? Ma.. Mas... Pe... Pe... Pelo... que? - Ele diz olhando nos olhos dela e falando com dificuldade.
- Senhor Garcia, é por culpa minha que está aqui. O senhor foi um cavalheiro, porém foi baleado. Ficarei aqui, cuidando do senhor. - Carmem lhe deu um sorriso e apertou sua mão. - Diga, senhor Garica, pode me perdoar?
A feição dele mudou, como se toda a dor fosse aliviada por um instante, os lábios dele se contorcem tentando sorrir, enquanto um gemido escapa dele. Mas os olhos dele brilham. 
- O... Ora... Ma... Mas eu só te... Tenho a a... Agradecer... E... Se... Va... Vai... Fi... Ficar... Aqui... Eu n... Não ia... Que... Querer... Es... Estar em... Ou... Outro lugar...
Carmem deixou correr uma lágrima, pois pra ela aquilo tudo era mágico. Sentia como se tivesse salvado a vida de Garcia, embora ele também tivesse feito por salvar a sua própria. Sentia por ele um sentimento diferente, que ela até então não sabia explicar. Depois das palavras dele, Carmem lhe deu um beijo na face, que tocou o gosto salgado do suor e doce do sangue seco:
-Tudo vai ficar bem, senhor Garcia. Fico feliz por estar melhor. Eu estava tão angustiada com tudo que aconteceu.
Garcia Contreras relaxou com o toque dos lábios dela. O rosto dele pareceu tomado de um alívio, enquanto os olhos se fecharam. 
- E... Eu só po... Posso.. Ag... Gradecer...
- Senhor Garcia, tente descansar. Durma um pouco se conseguir. Vou tentar levá-lo a um quarto, achar um outro hospital, ainda não sei, só sei que preciso lhe tirar daqui, não parece um bom lugar para se recuperar - Carmem contemplava os muitos corpos mutilados que Garcia ainda não podia perceber, mesmo dividindo uma maca com um deles. - Também preciso avisar a todos que o senhor está bem. Peço que tenha um pouco de paciência e tente dormir, enquanto providencio tudo o mais rápido possível. 
Carmem apertou na mão dele e sorriu novamente. Levantou e saiu lentamente do quarto, continuando a olhar cada vez mais de longe para Garcia. Ela cruzou a porta vendo-o cerrar os olhos e diria até que sorrindo. Ao virar-se para o corredor, viu o doutor Hurtado vindo em sua direção, nas mãos ele trazia um prato e um copo.
- Muito obrigada, doutor Hurtado, obrigada de todo o coração! E agora, o hospital ainda tem muita gente pra ser atendida? Posso ajudá-lo em alguma coisa?
- Vai me ajudar muito, senhorita, se comer essa comida aqui e beber um pouco de água e não ficar doente... - Ele disse sorrindo e estendendo o prato e o copo para ela. - Como está o seu amigo?
(Carmem sorriu pra ele, pegou o copo e o prato antes de responder: 
- Ele está bem, graças ao senhor doutor Hurtado. Afinal, quem ensinou o doutor Felipe a salvar vidas, não é? Eu até posso lhe dar essa "ajuda" - Ela disse apontando para a bandeja - Mas apenas se o senhor me acompanhar...
- Fico grato por sua cordialidade e graciosidade, Carmem. Terei o maior prazer em comer com você, mas achei que iria querer ficar de olho no seu amigo.
- Assim que terminarmos darei um jeito de tirá-lo daqui. É muito perigoso,entre tantos doentes, uma infinidade de mazelas. Entendo que não são condições dignas para ninguém doutor, mas o senhor Garcia eu posso tirar daqui e tentar dar-lhe um melhor repouso. Ainda não tenho uma boa ideia do que fazer, mas sei que preciso tirá-lo daqui. Enquanto ele descansa para que eu possa movê-lo, vamos descansar um pouco também, não é doutor? - Carmem deu um belo sorriso para o médico. - Me diga, onde podemos ir?
- Venha. - Hurtado disse enquanto seguiam pelo corredor de volta ao saguão, onde a enfermeira atendente os olhava chegar por trás do balcão. - Minha casa é contígua ao hospital. Felipe e Blanco, meus alunos e colegas estão lá jantando, podemos nos unir a eles. Será um lugar melhor do que aqui no hospital.
- Lúcia, qualquer coisa nos chame. Estamos em casa.
- Sim. Sim, doutor Hurtado. - A enfermeira disse com a voz cansada e rançosa.

sábado, 5 de setembro de 2015

Viviane: 1


São Paulo - 1966

- Boa noite. Você vem sempre aqui?
- Às vezes. Desculpe mas... eu o conheço?
- Não, você não me conhece senhorita. Mas há de concordar que a Rua Augusta a esta hora não é lugar para alguém da sua idade. Posso ver seu documentos?
- Desculpe, estou desprevenida. Deixei a bolsa no hotel. E acredite, não sou tão indefesa quanto pareço. Mesmo assim, obrigada pela dica, eu já vou indo.
- Acho que não fui claro, senhorita. - Ele remexeu nos bolsos do paletó. - Apresente-me seus documentos! - Ele tirou um maço de cigarros Hilton do bolso esquerdo e um isqueiro. - E você não vai a lugar algum enquanto eu não disser que você vai... - ele acendeu um cigarro.
- Ou talvez eu não tenha sido clara. Não sou da cidade e definitivamente não estou em busca de confusão. Agora se me permite, ainda tenho que passar no mercado antes de voltar para o hotel. Estou com  fome e tenho que esperar uma ligação. Ah, mais uma coisinha, cigarros fazem mal a saúde, não devia fumar isso. - Ela virou de costas e saiu andando enquanto dizia a última frase. No entanto,ela logo escutou um barulho metálico. 
- Não me obrigue a utilizar isso, senhorita. Não gostaria de ver o sangue de alguém tão bonita. Vire-se e me acompanhe... - Ele se aproximou. - Você irá me acompanhar até a delegacia e dar algumas resp...
Ela escutou o barulho de uma pancada que silenciou o sujeito. Depois, falou uma voz gritada e cheia de tensão:
- Não tente nada seu maldito porco capitalista. Você está bem, pequena?
- Com certeza não era isso que esperava quando cheguei aqui, mas estou bem sim. Obrigada. Quem é você? Alias, quem é ele? Eu realmente estou confusa...
- Meu nome é Raul. - Ele se abaixou e pegou a arma da mão do homem caído. - Ele é um maldito homem do governo. Venha, vamos sair daqui antes que alguém nos veja. - Raul seguiu fazendo sinal para que ela viesse. - Ele usava calças boca de sino marrons escuras uma camiseta preta um pouco apertada e tem um cabelo black power baixo. - Eu não sei o que ele queria contigo, mas eles andam procurando os líderes de movimentos revolucionários. Você não vem, pequena?
- Ah, sim... Eu... O que esse cara poderia querer comigo? Bah, nem sei direito o que vim fazer aqui. Mas, pra onde vamos? - Ela colocou as mãos nos bolsos da capa roxa que lhe cobria até os pés e baixou a cabeça olhando pro corpo no chão,sem saber se respirava. Raul espirava confiança, então ela decidiu segui-lo.
- Bem, eu nem perguntei seu nome companheira. - Raul riu. - Mas sem pressa, conversaremos melhor enquanto tomamos alguma coisa ali no Bar das Putas, é só descermos aqui na Consolação.
Eles tomaram a Avenida Paulista, na esquina com a Rua Augusta e seguem para o fim dela, mantendo-se juntos as paredes dos prédios e evitando os demais transeuntes. Raul tinha uma barba por fazer, que o envelhecia um pouco, mas olhos de um castanho muito vivo, que mostravam muita confiança e muitos sonhos. Ela pensou que ele teria não mais de que vinte e cinco, talvez vinte e sete anos. Ele trazia nas costas uma mochila velha e gasta.
- Meu nome é Viviane, normalmente me chamam de "V". - Ela disse finalmente. - Vim de Porto Alegre, mas afinal, o que está acontecendo nessa cidade? Tudo bem que a gente sempre sabe que o pessoal do governo anda atrás dos companheiros, mas acabei de chegar, o cara não poderia ter nada contra mim.
A capa dela estava bastante amassada principalmente nas costas, sinais do longo tempo desconfortavelmente sentada. O sapado plataforma preto estava bem lustrado e envernizado, mas dificultava acompanhar o passo ágil de Raul. Viviane tinha o cabelo ruivo extremamente liso, apenas uns poucos fios fora do lugar. Parecia ser do tipo que gostava de manter-se arrumada. Os olhos verdes davam um ar de inocência inocentes, assim como a baixa estatura. 
Eles seguiram em um passo acelerado, mas sem correr, por cem metros até o fim da Avenida Paulista e começam a descer a Consolação. Neste ponto iniciou-se uma leve garoa fina. Após caminharem por quase dez minutos, eles chegaram até um bar lotado. Ele ficaram numa esquina e um letreiro pintado sobre entrada dizia: "SUJINHO". A maior parte das pessoas estava apertando-se dentro do bar devido à garoa que agora já virou uma chuva leve.

- Venha companheira V, você vai adorar esse lugar. - Raul espremeu-se entre as pessoas que obstruem a porta e mesclou-se à massa de gente lá dentro. Viviane ainda ouviu a voz já meio abafada pelo barulho. - Uns camaradas estão me esperando...
Ela o seguiu, mas o cheiro do amontoado de pessoas suadas e agora molhadas, lhe embrulhou o estômago. Adeus fome que sentira antes. Continuava se perguntando o que estaria fazendo ali. Uma ligação na semana anterior lhe intrigara, um homem falando muito baixo lhe "convocava" a presença. Mas antes que ela pudesse lhe fazer qualquer pergunta, ele desligara. Quem era ele? Como sabia tanto sobre ela? Não podia deixar de pensar nisso. Será que o encontraria ali naquele barzinho estranho? 
Quando Raul parou, V esbarrou nele, pois estava muito longe em seus pensamentos. Ele olhou para trás e um sorriso tranquilizador partiu de seus lábios. O rapaz apontou uma mesa no fundo do estabelecimento e falou:
- Ali, companheira V, lá estão meus camaradas 
Era uma mesa simples para quatro pessoas, onde estavam sentadas seis e outras cinco estavam em pé ao redor interagindo com as pessoas sentadas. O bar estava muito cheio, todas as mesas estavam lotadas, com mais
pessoas do que comportariam e apenas quatro garçons corriam para tentar atender a todos. Alguns quadros decoravam as paredes e tudo é bem simples. 
O público era formado por jovens, com roupas casuais e despojadas, como os companheiros de Raul na mesa ao fundo, assim como outro grupo de jovens parecidos em outra mesa. Além deles, muitos homens, em sua maioria de peles morena e traços nordestinos bebiam e conversavam, além de mexerem com as senhoritas que conferiam o apelido do local.
Após se acotovelarem com alguns homens, os dois chegaram até a mesa, sem que V escapasse de olhares e burburinhos nada cavalheirescos.

- Finalmente Raul! Achamos que tinha sido pego, porra! - Virou-se o mais próximo dos camaradas. Era um rapaz de uns vinte e cinco anos, cabelos desgrenhados, camisa aberta, vários cordões no pescoço.
- Foi mal, porra! Estava ajudando alguém com problemas com um dos filhos da puta da máquina de repressão do governo. - Ele não contém uma leve risada.
- Ajudou quem? Algum operário? - Levantou-se uma garota sorridente e animada do meio do grupo.
- Ela... - Raul saiu da frente, deixando Viviane de frente para os onze camaradas.
Com um sorriso tímido e envergonhado, ela disse apenas:
- Olá. - Que saiu abafado, apenas perceptível pelo movimentos dos lábio cuidadosamente pintados e voltou a olhar para baixo. Por um segundo, ninguém falou nada, até que a garota entusiasmada falou: 
- Ah...
- Bem V, esses são João, Zeca, Tiago, Robertão  - Raul apontou para o que fora o primeiro a falar no começo - e Jorge - referindo-se aos cinco de pé - e esse é o Vavá, Hunguera, Ernesto. Aquele ali no fundo é o Waldemar - que levantou o braço - do lado dele é o Hélio e essa aqui é a Rosa.

Todos fizeram acenos e teceram rápidos cumprimentos. Alguns pareceram mais concentrados no físico da recém-chegada do que na sua pessoa. Jorge e Hunguera pareciam mais concentrados em algo no colo de um deles, que está sendo enrolado e é perceptível o olhar de desconfiança de Rosa.
- Olá para todos. - V disse embora com um sorriso amplo dessa vez.
Ela ainda se sentia estranha com o local e principalmente com o olhar de Rosa. Sente uma certa curiosidade sobre o rolinho no colo de Hunguera, mas como boa atriz, não deixou transparecer, assim como também não era perceptível o desconforto de quem não entendia muito do que estava acontecendo ou o que fazia ali. Ela espera simplesmente causar boa impressão.
- Olá.
- Tudo bom.

- Muito simpática sua amiga, Raul. - Todos fazem um cumprimento ou aceno, menos Rosa.
- Bom simpatia, de qualquer forma venha cá, que estamos atrasados  temos umas pendências a resolver. - Robertão puxou Raul para um canto, fazendo sinal para Hélio e Waldemar se aproximarem. Raul vai, embora
pareça querer ficar.
- V? V de que? - Aborda Jorge, que estava mais próximo dela. Era um sujeito de uns vinte e cinco anos como os outros, mais alto. Tinha cabelos cacheados até abaixo dos ombros e vestia uma camiseta branca e jeans
surrados,. - Você não parece ser daqui de Sampa, pequena.
- Não, Jorge, não sou daqui realmente. - Ela disse com um sorriso tímido, ela colocou o cabelo atrás da orelha direita. - Sou de Porto Alegre. Meu nome é Viviane, muito prazer. - Com os olhos, no entanto, ela buscava discretamente por Raul. Tudo era muito estranho, embora me sentisse bem na presença dessas pessoas, tudo acontecia rápido demais. Ela procurava ser simpática. - E você, o que faz?
- Eu sou um doido poeta errante - ele riu. - Eu adoro Poa, como é lindo por do sol às margens do Guaíba. - Jorge pegou o braço de Viviane e a trás para perto da parede. - Vem cá...
Raul parecia realmente ocupado escutando algo que Robertão descrevia para ele, Hélio e Waldemar, mas a todo instante lança um rápido olhar para V. Os outros também passam a discutir outras coisas, ainda que Rosa mantenha-se atenta a Viviane.
Ela apenas aproveitou para se encostar na parede, mesmo com os olhos vagando pelo lugar sem saber pra onde olhar. V sentia as pernas doerem pelo tempo caminhando. 
- Infelizmente o Guaíba está cada dia mais poluído. Na verdade eu moro em Viamão, faz parte da grande Porto Alegre, fica a menos de 15 min do centro, mas estudo e trabalho em Poa mesmo. O que esse pessoal costuma fazer alem de salvar moças indefesas?
- A gente discute muita política aqui, planejamos como vamos derrubar os mílicos e fazer a revolução. - Há um tom de ironia na voz de Jorge, seguido de uma leve risadinha. - Claro que isso fica pras nossas cabeças conspiradoras... o Robertão, o Raul, o Hélio e o Waldemar. Somos todos da UNE e sempre nos reunimos aqui. O Robertão quer pegar em armas e tal. O Raul acha q devemos seguir o caminho da discussão. Já eu, bem... Eu quero viajar sabe... - Há um movimento na mesa e Hunguera faz sinal pra Jorge e se levanta, ela e Zeca começam a se dirigir em direção à saída. - E aí, tá afim de relaxar um pouco?
- Bem, não tenho muita opção no momento. Ela riu. - Pra onde vocês vão?
- Bem, dona Viviane, nós vamos aqui atrás fazer uma fumacinha, encontrar um pouco de paz desse mundo doido sabe. Já puxou fumo?
Enquanto Jorge fala os outros já deixam o bar. Ele começa a ir na direção, enquanto aguarda a resposta. Atrás V podia ver que a conversa entre Raul e os outros estava se transformando em uma discussão e que o Robertão estava cada vez mais exaltado. Ela ouvia apenas os trechos mais gritados: 
- Você fica trazendo a porra desses merdas que não querem nada com nada... 
- Os mílicos vão acabar com a nossa raça desse jeito, é batata. Quem tu pensa que é, eu tenho 8 anos de movimento estudantil sacou, enquanto vocês tavam recebendo talco na bundinha branca, eu tava... e tomando porrada de milico na rua e...

- Viviane? V??? - A voz de Jorge novamente lhe chamou a atenção. - E então? Vamos? Não vai me responder?
-Bem, eu não vou não, agora não. Obrigada, mas vou procurar um lugar pra sentar e ver se como alguma coisa. Eles servem algo comestível por aqui, certo?
- Bom, como você quiser. Eles servem uma "famosissima" porção de repolho com cebola. Eu acho uma merda, mas todo mundo adora. Pede um bife, com arroz e feijão, que é isso é que enche barriga. Deixa eu correr que senão os caras fumam tudo. Qualquer coisa tamos lá atrás... - E Jorge num passo rápido sai do bar.
Quando ela se sentou, percebeu que ia ser difícil conseguir chamar um garçom e que Rosa continuava a encará-la, enquanto a discussão estava cada vez mais quente entre Robertão e Raul.
Viviane procurou se sentar perto de Rosa, afinal se ela estava a encará-la, possivelmente teria um motivo. V pensou que a ultima coisa que queria era criar inimizades. Depois de muito esperar, conseguiu a atenção de um garçom.
- Você costuma comer aqui Rosa? Aconselha alguma coisa?
- Você acha que me engana com esse seu tipinho de sonsa, de... de perdidinha - Rosa falava num tom audível apenas para as duas. - Você pode enganar esses trouxas, mas a mim não engana não... e então ela falou alto para todos ouvirem. - Acho que você pode experimentar o filé à cavalo...
Nesse momento, Robertão derrubou uma cadeira:
- Você se acha muito importante, companheiro Raul. Pois as suas idéias só vão fazer você acabar numa solitária apanhando de mílico, o movimento estudantil tem que ajudar a revolução!
- Eu me nego a ajudar no derramamento de sangue de qualquer um. Que merda Robertão, porra, como pode ser tão cego? Que merda, você não pode ser como eles para derrotá-los, de que serve?

Robertão colocou o dedo na cara de Raul e gritou: 
- Se não está com a gente, você não tem nada que fazer aqui!
Hélio e Waldemar entram no meio, enquanto conversavam com Raul e Robertão, mas Raul se virou e fez menção de partir. Rosa se levantou e abraçou Robertão.
- Calma, querido, acho que já devemos ir. Deixa o Raul pra lá...
Raul para a meio caminho da porta e virou-se: 
- Vem V, melhor sairmos daqui...