O céu estava estrelado e a lua crescente, uma brisa fria e refrescante sacudiu os cabelos embaraçados de Carmem. Para ela foi bom respirar um ar sem cheiro de sangue.
Eles dobraram o rumo ao lado do hospital e ali estava a pequena casa, tão simples quanto a dos demais habitantes que viviam na cidade. Não possuía mais do que quatro cômodos e o teto era do mesmo barro vermelho típico da região. As paredes certamente precisavam de pintura com seu branco cal agora encardido pela poeira.
Passando pela porta, já na sala, havia uma mesa de madeira rústica com quatro cadeiras, duas estavam ocupadas, uma pelo Doutor Felipe e a outra por outro homem. Ele era mais alto e robusto que Felipe, mas da mesma idade, cerca de 30 e poucos anos. Já estava um pouco calvo e tinha a pele levemente morena, com alguns traços mais grossos como os dos árabes, mas bem leves. No todo parecia um espanhol típico com os cabelos pretos e lisos e os olhos amendoados. Ambos devoravam com apetite a comida no prato de barro, à frente deles uma panela e uma jarra.
Ambos os viram chegar. Felipe seguiu comendo após um aceno com os olhos, enquanto o outro, que agora ela reconhecia como um dos enfermeiros que a ajudara no hospital, fez um aceno com a mão.
- Olá senhorita. Sou Blanco, lembra-se? Mais calma? Sente-se por favor. - Ele levantou e puxou a cadeira.
Carmem sorriu para eles:
- Sim, muito obrigada. Doutor Felipe, queria lhe agradecer por ter salvo o senhor Garcia. O senhor é um ótimo médico. Não se incomode comigo, por favor, sente-se. - Ela pegou a cadeira e sentou-se ao lado deles. Estava um pouco tímida, mas aos poucos a conversa a descontraiu.
- Não foi nada... - Felipe disse com a boca cheia e sem parecer dar muita importância.
O Doutor Hurtado sentou-se, por fim, na última cadeira, de fronte para ela.
- Coma Carmem..
Enquanto Blanco tornava ao prato dele, Raul pegou um que ali estava e começou a se servir.
- Obrigada, doutor Hurtado. Sinceramente, estou mesmo faminta.
Enquanto o doutor Hurtado despejava a mistura de carne, feijão e molho de tomate sobre o prato, Carmem levava as primeiras garfadas da comida à boca. Sentia a leve picância típica dos pratos mexicanos, até pouco ardida para os hábitos alimentares dela. A comida estava saborosa, mesmo estando a carne um pouco dura. Antes mesmo de começar a saciar a fome, todo o prato de comida havia acabado.
Hurtado ainda comia, olhando-a de quando em quando em meio àquele silêncio dos famintos. Blanco bebia água da jarra, enquanto Felipe, de pé, colocava o prato sujo dentro de uma grande tina de madeira, já ocupada por um tanto de louça suja.
Carmem parou de comer, deu uma observada no lugar, que talvez por ter tantos homens que eram tão ocupados, não estava nada organizado. Carmem percebia os olhares do doutor Hurtado, porém apenas sorria.
- Se os senhores quiserem, posso dar uma ajuda na casa..
- Você não se cansa nunca, Carmem? - Disse o doutor Hurtado rindo e sendo seguido por Blanco, enquanto Felipe simplesmente levantou e saiu dali, pela porta, deixando a casa.
Ali na sala, além da mesa, havia uma cômoda grande de madeira escura com quatro gavetas. Sobre ela haviam alguns porta-retratos e um pequeno vaso com flores já ressecadas. Havia também um banco longo e baixo sobre o qual poderiam sentar três pessoas, encostado á parede, bem como um pequeno quadro na parede oposta à porta da entrada, onde via-se um mar e um belo litoral, com uma cidade ao fundo.
- Coma apenas, pois quando terminar iremos acompanhá-la até sua casa... - Terminou de falar Raul entre as garfadas na comida no prato.
Carmem sorriu e balançou a cabeça:
- Mas não posso ir para casa... Antes tenho que tomar todas as providências pra tirar o senhor Garcia do hospital, eu não poderia de qualquer forma deixá-lo lá sozinho e ir embora. Quanto à ajuda, ficaria contente em contribuir por aqui, a não ser que prefiram recusar uma jovem solidária - Carmem sorriu para Hurtado novamente.
- Serei obrigado a recusar, senhorita - disse o doutor Hurtado ainda rindo. - Mas Blanco e eu a ajudaremos a levar o senhor Garcia até sua casa, onde de certo ele estará melhor acomodado. Passaremos a lista de remédios que vocês devem comprar para ajudar na recuperação. Quem sabe outro dia você não torna e aí aceitaremos sua ajuda... - Raul terminou de comer o último pedaço de carne, que mastigou com elegância, enquanto Blanco pôs um tanto mais de comida no prato.
Carmem os olhava com admiração e se sentia cada vez mais aturdida e encantada por aquele novo mundo, aquele lugar, onde tão poucas pessoas faziam o máximo de si para ajudar tantas pessoas em estado lamentável. Tudo era tão distante de sua vida mesmo estando ali tão próximo.
- Doutor Hurtado, eu estava pensando... - Carmem hesitou um pouco, mas resolveu falar. - Eu não tenho um conhecimento muito grande em saúde, medicina... Quer dizer sei de algo que já vi em alguns livros somente, mas tenho uma enorme vontade de ajudar as pessoas por aqui. Quem sabe, vocês não estão precisando de alguém a mais aqui no hospital... - Carmem concluiu num tom de voz baixo e suave, até mesmo trêmulo. Estava com medo da resposta que o simpático doutor pudesse lhe dar. Ou até mesmo da interrupção dos companheiros do doutor, que até o momento tinham se feito indiferentes da presença dela ali ao que lhe parecia.
O doutor Raul Hurtado terminou de mastigar e engolir, sob os olhares interessados não só dela, mas também de Blanco:
- Todos os braços aqui fazem diferença, senhorita. De certo, seria ótimo ter sua ajuda. Mesmo sem ser médica ou enfermeira, certamente teríamos muita utilidade para sua intensa vontade de ajudar. Lúcia poderia treiná-la, não acha Blanco?
- Claro! - Disse Blanco com um sorriso espontâneo. - Eu posso ajudá-la também. Não sou médico também, isso só o doutor aqui e o Felipe. Eu e Lúcia somos enfermeiros. Tem o Ramirez e o Esteban, aqui da vila, que treinamos para nos ajudar como enfermeiros, mas você vai aprender muito mais rápido que eles.
- Mas não quero problemas com sua família, senhorita Carmem. Seu irmão me pareceu um tanto... Ãh... Intempestivo... - Hurtado deixou o garfo sobre o prato vazio.
- Meu irmão... Ah meu irmão! Ele tem o hábito de achar que é por certas horas meu pai. Mesmo que fosse, não haveria de me impedir de ajudar tantas pessoas necessitadas. Minha mãe é quem me importa, doutor Hurtado. - Carmem perdeu o sorriso e o olhou seriamente. - E eu sei que ela não iria se opor ela mesma a auxiliar se soubesse de tudo que vi e vivi hoje aqui. - Depois se virou para Blanco com um sorriso. - Se o senhor puder me ajudar a aprender isso tudo que não sei, eu ficaria muito grata mesmo, mas, antes de qualquer coisa, preciso tirar o senhor Garcia daqui. Falando nisso... - Ela se voltou para o médico novamente, mas agora com uma certa ironia ao final. - Se o senhor me permitir doutor, eu poderia ir até lá ver como ele está.
- Vá senhorita, tão logo Blanco termine de comer iremos ajudá-la a levar seu amigo para casa. - O doutor Hurtado disse fazendo um leve movimento de cabeça, enquanto estendeu a mão até a jarra e encheu um copo com água.
- Está bem então, se me dão licença, a comida estava ótima, obrigada pelo jantar.
Carmem entrou no hospital com o espírito mais leve, além das forças renovadas pelo alimento. Ainda que tudo ali continuasse desolado como antes, algo nela estava mais preparado para tudo ali, além do novo ânimo de que poderia ajudar a melhorar a vida de todos aqueles necessitados.
O saguão continuava tomado por algumas pessoas que dormiam, enquanto por trás do balcão apenas Lúcia a assistiu chegar. O rosto dela estava pesado pelo sono e pelo cansaço. Ela acompanhou o caminhar de Carmem, enquanto se dirigia para o corredor que se iniciava por trás dela:
- Espero que tenha estado tudo do seu agrado, senhorita Rubio. - Havia certo sarcasmo na voz dela. - E que não tenha se espantado com nosso pequeno circo dos horrores... - E o sarcasmo parecia aumentar a cada palavra.
Carmem não entendeu o intento de Lúcia.
- Estará do meu agrado quando estas pessoas estiverem melhores, senhorita Lúcia. - Talvez a enfermeira a tratasse assim por Carmem ser de uma rica família, por ciúmes do doutor Hurtado, o simplesmente por estar exausta. No entanto Carmem continuou - E pra mim isso não é um circo de horrores e sim uma coisa desumana. Não costumo observar as pessoas como animais de um circo, afinal se assim o fosse, eu não estaria a madrugada toda tentando salvá-las.
Carmem resolveu se calar, por que iria querer enfrentar Lúcia? Nem ela mesmo entendia porque a enfermeira a tratava daquela forma. Mesmo assim, Lúcia aprumou-se diante daquelas palavras, fulminando com os olhos:
- És uma jovem muito altruísta, mocinha. - O sarcasmo era suficiente para aquilo não soar como um elogio.
No mesmo instante, porém, o doutor Felipe emergiu do corredor que levava até o quarto de Garcia Contreras.
- Algum problema, Lúcia?
- Não, Felipe. Estava apenas conversando com a senhorita Rúbio.
Felipe então lançou os olhos indiferentes para a jovem:
- Seu amigo está a esperá-la senhorita.
- Sim, doutor Felipe, estava indo até lá. E o doutor Hurtado já está no hospital? - Carmem falou aquilo somente para ver a reação de Lúcia, num tom irônico, sentindo-se cansada de todo aquele joguinho com a enfermeira.
- Achei que ele estava jantando com você.. - Felipe estranhou as palavras dela, enquanto Lúcia lançou um olhar felino para ela.
A enfermeira virou-se para Felipe falando:
- É melhor fecharmos tudo e irmos descansar.
- Sim, já é hora. Vá logo ver seu amigo, senhorita Carmem Rúbio, pois temos de fechar o hospital.
- Como assim fechar o hospital? E se acontecer algo grave enquanto o hospital estiver fechado? Doutor Felipe, o doutor Hurtado pediu para que eu o esperasse. - Carmem novamente sorriu para Lúcia com um ar desafiador.
- Irão nos procurar em casa e reabriremos se algo ocorrer. - Disse Lúcia com a petulância de quem sabe o que diz.
- Precisamos descansar, senhorita Rúbio e não podemos deixar os pacientes à mercê de quem quiser entrar. Mas se vai esperar pelo doutor Hurtado, creio que eu posso me retirar e vocês cuidam de fechar tudo.
- Mas Felipe... - Disse Lúcia com o receio de quem ficará só, embora Felipe não tenha dado importância e sem nem mesmo olhar para elas, saiu dali.
Carmem ouviu a voz de Hurtado dizendo o nome dele e logo em seguida o médico e Blanco apareceram
- Pronta Carmem? Seu amigo está pronto?
- Eu estava o aguardando, doutor Hurtado. Creio que o senhor e senhor Blanco vão comigo até lá? O doutor Felipe mandou Lúcia fechar o hospital.
- Felipe está um pouco cansado, mas realmente já é hora de fecharmos. Vamos logo ao encontro do seu amigo. Lúcia, você pode começar a fechar tudo...
- Sim senhor, doutor... - Lúcia disse passando por ele com um nítido tom de irritação na voz.
O doutor Hurtado não pareceu ter se apercebido e seguiu em direção ao corredor que levava ao quarto de Garcia Contreras, sendo seguido por Blanco, que deu uma olhada para trás vendo Lúcia passar, mas ainda assim seguiu. Carmem sorriu, balançou a cabeça e caminhou atrás de Blanco, lembrado-se agora, de que o encantador senhor Garcia estava lá, correndo sérios riscos de infecções ficando por ali. Eles seguiram pelo corredor e logo estavam novamente diante de. Garcia, ali prostrado entre toda aquela gente moribunda.
Blanco e Hurtado pegaram uma padiola e, com cuidado, passaram-no para ela, enquanto Carmem segurava a cabeça do desacordado amigo de Carlos. O pano branco amarronzado de sangue ressecado, afundou com o peso dele e tanto Blanco quanto Hurtado fizeram bastante força.
- Nossa! Como é pesado! - Blanco disse enquanto eles iam saindo para o corredor.
- Vamos logo... - Disse Hurtado, fazendo careta de força.
A conversa incomodou alguns, mas ninguém reclamou enquanto eles logo saíam dali. Logo chegaram ao saguão do hospital e dali para fora, onde apenas a noite cobria suas cabeças. O caminho até a fazenda onde Carmem morava era longo, mas a casa da cidade ficava logo ali, a três prédios da Igreja.
Carmem pensou um pouco e achou melhor ir até a casa, pelo menos por aquela noite. No outro dia, pela manhã, pediria para o seu irmão ou Carlos irem até lá buscar o senhor Garcia.
- Doutor Hurtado, vamos levá-lo para uma casa aqui perto, está bem? Assim não precisamos carregá-lo até a fazenda, afinal de contas, isso seria um tanto complicado.
Eles puseram-se a atravessar as ruas empoeiradas e sinuosas da Cidade do México, que estavam desertas àquela hora, atravessando a praça da Igreja e finalmente, com os médicos já exauridos, chegaram ao portão de ferro da grande mansão. Dois homens montavam vigília ali, escorados no muro e apoiados em suas espingardas. Carmem logo reconheceu Esteban e Juan, dois dos funcionários de seu tio Fernandez Rúbio. Como a maioria deles, eram rudes, mal-cheirosos e sem educação, apenas capangas broncos que pela robustez serviam de seguranças.
- Boa noite, dona Carmem... - Disse Juan, enquanto Esteban apenas tirou o largo chapéu e fez um cumprimento movendo a cabeça. - Doutores...
- Podem nos ajudar aqui, senhores? - Hurtado não escondia que estava esgotado pelo peso.
- Claro! - Disse Juan pegando a padiola de Hurtado, enquanto Blanco a entregou a Esteban. - Mas... É que... Tão todos na festa na fazenda... Num tem ninguém aí...
- Sim, homem, eu sei - explicou Carmem - mas está muito tarde para levarmos ele até a fazenda e apenas nós não conseguiríamos fazer isso. Por isso, o senhor Garcia ficará a noite aqui e eu cuidarei dele. E amanhã pela manhã um de vocês vai até a fazenda chamar meu irmão e o senhor Carlos, amigo do senhor Garcia... Agora, ajudem-nos a levá-lo para dentro e deixemos de conversas. - Carmem foi um tanto rude pelo cansaço.
- Sim, senhorita.
Os dois disseram obedientemente entrando pelo portão com a padiola, sendo seguidos por Carmem, Hurtado e Blanco. Eles passaram pela calçada cercada da grama verde e bem cortada do jardim, que apesar das condições desfavoráveis do clima, era de certo a mais verde da Cidade do México. Passavam pelas estátuas bregas que sua tia tanto gostava, de deuses e deusas gregas, que buscavam dar um ar aristocrático ao jardim, mas sendo elas de gesso, apenas destoavam de tudo que havia ali. Haviam ainda algumas frondosas árvores, que durante o dia proporcionavam boa sombra.
Logo, Juan estava pegando o molho de chaves e abrindo a grande porta de madeira do casarão colonial. A casa havia sido uma das primeiras construções da cidade dominada pelos espanhóis, em estilo clássico, e de certo foi a mais suntuosa durante muito tempo. Estava na família de Carmem há pelo menos dez gerações e se hoje carecia um pouco de pintura e de algumas reformas, ainda exibia um esplendor invejável para a maior parte dos que punham os olhos nela.
A porta rangeu ao ser empurrada, enquanto eles entraram pisando o assoalho de madeira. O saguão da casa estava repleto de bustos, tapeçarias e tantas coisas mais, que causava certa confusão aos que não estavam acostumados àquele ambiente, ao contrário de Carmem. Isso piorava na escuridão da noite, onde apenas vários vultos eram visíveis.
Havia a grande escadaria que levava para o andar superior, onde ficavam todos os quartos, nada menos que dezesseis, enquanto o piso térreo, seguindo-se por uma das portas ali presentes, compreendia a cozinha, o pátio, os cômodos dos criados, entre outras coisas.
- Para onde, senhorita? - Perguntou Juan ainda na escuridão.