segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Carmem: 2

Todos estavam aterrorizados e obedeceram o bandido. Garcia e Carlos se olharam antes de deitar ao chão, como se estivessem planejando algo. Carmem percebendo isso cochichou ao ouvido de Garcia:
- Senhor Garcia, não faça nada, eu imploro em nome de Deus! 
O bandido ouviu e tomou o braço de Carmem, fazendo-a se levantar:
- Ora ora o que temos aqui... a filha de um dos tiranos do poder é isso mesmo que eu vejo?? O que será que me impede de matá-la? E matar você também, Carlos ou qualquer um de vocês aqui? Acho melhor calarem-se ou pode ser muito pior!
Paolo segurava o braço de Carmem com força, apertando com as mãos grossas e ásperas de camponês. Ele trabalhara durante muitos anos na fazenda do pai dela e na adolescência envolvera-se com Constanza, mas fora algo frívolo e passageiro como é próprio dos jovens. Mas ninguém nunca soubera que ele tinha relações com os revolucionários do Sul. Muito se falava do General Emiliano Zapata, diziam que era um homem de mais de dois metros de altura e de uma crueldade nunca vista antes, diziam que usava feitiçaria asteca. O povo o amava.
Enquanto Paolo apontava a arma para Carlos e puxava Carmem, os outros bandidos, mais de dez à essa altura, circulavam entre os convidados privando-os de brincos, pulseiras, carteiras, bolsas e tudo o mais que possuísse algum valor e estivesse à vista, enquanto alguns, ainda a cavalo selavam a entrada da igreja.
Ainda assim, Garcia levantou-se abruptamente, agarrando o rifle de Paolo e fazendo-o atirar para o alto.
- Você acha-se homem, seu covarde maldito? - Disse ele enquanto os dois lutavam pela arma. 
No entanto, um disparo de um dos outros bandidos o atingiu nas costas e interrompeu a luta, derrubando Garcia no chão e fazendo Carlos urgir em direção aos bandidos para ajudar o amigo. Mas Paolo foi rápido em por a arma entre eles:
- Mais uma gracinha dessa e ninguém sai vivo daqui...
Carmem olhou indignada para o bandido e gritou:
- Está certo, agora o senhor vai matar a todos? Me mate se quiser, mas não vou deixar o senhor Garcia morrer por uma ignorância de tamanho tão grande. 
Paolo se assustou um pouco, surpreso com a bravura da moça que ele lembrava como uma menina tão delicada. Ela lutou e se soltou, correndo em direção a Garcia, que agonizava no chão.
- Não se preocupe, senhor Garcia, eu vou dar um jeito nisso. Aprendi algo sobre cuidar de feridas.. vi alguns livros.. quero dizer.. ai meu Deus.. eu vou tentar salvá-lo! Acho que o tiro não pegou em cheio - ela dizia apesar de todo aquele sangue - vou cuidar do senhor.
- E pra que você quer salvá-lo? - Riu Paolo. - Um homem fraco como esse.. recebendo atenção da filha de um tirano.. se não fosse mais uma das meretrizes dessa família, talvez até admirasse sua bravura. Você pode tentar Carmencita, mas sei que não podes fazer nada. 
Enquanto isso, os bandidos continuaram pegando os pertences de todos, cada vez enchendo mais os bolsos e seus grandes sacos, que carregavam em pares. Garcia continuava no chão ao lado de Carmem, cada vez mais pálido, enquanto ela desesperadamente lutava pra salvar sua vida.
Carlos olhava a tudo um tanto atônito, por fim, deitando-se de novo no chão. Apenas Carmem, de joelhos ao lado do senhor Garcia Contreras em seu colo, estava erguida enquanto tentava impedir o sangramento ininterrupto do meio das costas do homem. Ele gemia de dor e um pouco de sangue escapava por sua boca.
- Ca.. car.. mem... de..i..xe-me... arrr... vou mo..rrer..
Temendo cada vez pelo pior, Carmem por fim enfiou dois dedos no buraco do tiro, em busca da bala, sabia que precisava removê-la e depois interromper o sangramento.
Já bastante abastecidos, os bandidos começavam a recuar e retirar-se da Igreja um por vez, até que Paolo, por último, ainda apontando a arma falou:
- Obrigado a todos pela colaboração. Espero que quando vier a Revolução eu esteja à frente dos pelotões de fuzilamento para nos encontrarmos uma vez mais! - E virando-se, partiu.
Muitos convidados levantaram-se, enquanto outros permaneciam tremendo de medo deitados. Alguns homens urgiram para a porta, como se agora fossem fazer algo. Carlos correu para Carmem e Garcia. 
- Garcia.. meu amigo.. venha, precisamos levá-lo para o hospital...
Neste exato momento, Carmem trouxe de volta os dedos ensanguentados com o projétil de chumbo amassado, mostrando que conseguiu retirar a bala que estava nas costas de Garcia. 
- Aqui, consegui finalmente! Agora precisamos conter o sangramento e levá-lo ao hospital o mais rápido possível.. - ela disse para Carlos, enquanto já rasgava seu belo vestido, fazendo pedaços de pano para conter o sangramento de Garcia. 
Carlos e mais três outros amigos convidados carregaram Garcia Contreras até um carro e o levam ao Nossa Senhora de Guadalupe, que era perto da igreja. Carmem insistiu em ir junto, mesmo que sua mãe não quisesse que ela se afastasse dali, além de não haver espaço suficiente no carro. Ela resolveu ir de uma forma ou de outra, correndo a caminho do hospital erguendo a saia em trapos que atrapalhava seus movimentos. 
Quando chega à porta do hospital, ela encontra Carlos, na recepção, ele parecia desolado: 
- Ele está sendo cuidado. Mas há pouca esperança, Carmem. Você.. você veio correndo? Seus pés estão horríveis. Venha, venha se sentar..
- Que tragédia, ó Deus. E no dia do seu casamento com Constanza, que horror. Eu espero que ele viva. Garcia não merece morrer, se morrer acharei que foi por minha culpa, rezarei muito por ele!
- Não, não é de ninguém a culpa. - Carlos disse com as mãos nos ombros dela tentando consolá-la. - Ou melhor.. é daqueles malditos bandoleiros, daquele Paolo, eu irei denunciá-los! Irei cobrar uma atitude do prefeito, das autoridades! Eu irei até o presidente se necessário, mas Zapata e seus baderneiros não podem continuar a perpetuar o caos pelo México.
Os outros rapazes continuavam a circular ali pelo hospital Nossa Senhora de Guadalupe, algumas enfermeiras atendiam várias pessoas ali mesmo na recepção tão lotado estava o hospital. Carlos ainda falava:
- Talvez seja melhor que vá para casa, pedirei para Pedro acompanhá-la, esse lugar é muito funesto.
- De maneira nenhuma, Carlos! Você é quem deveria ir embora. Constanza deve estar apavorada, eu não irei sair daqui até receber notícias de Garcia, se necessário até mesmo posso ajudar os enfermeiros daqui, mas não vou deixar Garcia sozinho aqui. 
Enquanto Carmem falava, chegaram alguns homens carregando uma mulher e sua filha pequena, que haviam sido baleadas numa confusão. Vendo que não havia quem pudesse ajudar, Carmem não resistiu a ajudar, fala com as enfermeiras:
- Carlos, eu preciso fazer algo por esses pessoas - ela disse se afastando do noivo da prima. - Se o governo não faz, se a polícia ou qualquer responsável deixa estas pessoas serem baleadas, roubadas, serem mortas, eu posso fazer a minha parte e ajudar, nem que seja ao menos um pouquinho.
Carlos até tentou impedi-la, mas Carmem, mesmo com os pés feridos e com bolhas disse para os homens levarem as duas corredor adentro sem se preocupar com as enfermeiras. Ela vai ajudando a carregar a maca onde estão mãe e filha juntas, enquanto a voz de Carlos se perde atrás dela. Sua mente ainda pensava no pobre senhor Garcia, mas vendo o sangue que saía do ventre da jovem mulher, da mesma idade da sua lhe parecia, ainda que envelhecida pela árdua vida no campo, não podia deixar de ajudar, de sentir-se útil. Seus pés reclamavam, mas a dor sumia ante a preocupação com a pequenina que sangrava pelo ombro, não devia ter mais de 4 anos.
Os carregadores logo adentraram um quarto, o cheiro de sangue ali era intenso, cheiro de sangue velho, misturado ao de urina e vômito. Haviam pelo menos vinte pessoas dentro do quarto, todas pobres e miseráveis. Algumas estavam desacordadas sobre lençóis no chão, enquanto outras se amontoavam gemendo, orando ladainhas cansativas ou chorando. Eram camponeses e Carmem até conhecia alguns de vista.
O calor era o pior de tudo.
Um único homem corria entre elas a socorrê-las. No momento, estava a usar um canivete para cortar a perna esfacelada de um velho.
- Doutor...- disse um dos carregadores para o homem de jaleco marrom-sangue seco, que já fora branco. - Temos mais duas baleadas...
O médico preocupado, impaciente, e até mesmo irritado com tamanha falta de espaço, de medicamentos, e de condições pra receber mais pessoas gritou:
- Sim, sim e qual a novi... - antes de acabar a frase, se deparou com a jovem Carmem, com os pés em estado lastimável, o vestido ensanguentado e rasgado, os cabelos soltos e desgrenhados, sem nenhum resquício do penteado do casamento, com ar de cansaço e preocupação.
- Temos uma jovem solidária tentando nos ajudar a salvar a vida dessa mulher e de sua filha. - Diz o carregador.
O médico, sem muito pensar, deixou-a ajudar.
Carmem estancou o ferimento da menina, e consegue fazer o sangue parar de jorrar, o ferimento era mais leve que o da jovem mulher, que parecia não estancar nunca. Os carregadores foram buscar uma enfermeira, mas logo um deles voltou sem ninguém. Ele mesmo tentou achar a bala para arrancá-la do corpo da pobre miserável, enquanto Carmem, depois de amenizar a dor e o ferimento da menina, caminhava entre os outros pacientes, apertando as mãos de uns, dando consolo a outros. Pegou alguns panos e molhou numa água turva que havia ali, como compressas improvisadas. Ouvia gemidos, lamentos e histórias, porém sempre a pensava em Garcia, onde ele estaria, se estaria ainda vivo. Ela se perguntava se o inferno seria parecido com aquele lugar, enquanto tentava amenizar o sofrimento de todos que estavam ali, bem sabia haverem muitos outros quartos apinhados de gente como aquele, de gente sofrendo.
Carmem assistia o médico que urgia tentando salvar vidas, enquanto a morte se avizinhava para tantos. Ela o viu amputar a perna do velho, extrair a bala da mulher, fazer sangrias para aliviar a pressão, enquanto uma enfermeira que fora trazida enfim pelo outro carregador, uma senhora que parecia uma velha freira, apesar do avental branco, realizava suturas com linhas de roupa e imobilizava membros quebrados. Ela chamava por Carmem para ajudá-la.
No entanto, o tumulto no hospital não cessava e podia-se ver os carregadores e as enfermeiras sempre a trazer novas vítimas, fossem baleadas ou acometidas de mazelas naturais como cólera e gripes severas, até mesmo moléstias profundas sem identificação, mas que lhes arrancavam gritos e suspiros finais. As mãos de Carmem estavam doloridas já e banhadas pelo sangue de outros, assim como seu rasgado vestido, outrora chique e digno de um casamento.
Talvez ela tenha passado ali uma hora ou talvez seis, já não sabia dizer ao certo. Apenas foi desperta daquele purgatório, quando Carlos surgiu à porta. Com ele estavam o pai de Constanza, Dom Fernandez, e Álvaro, o irmão de Carmem, que parecia furioso.
- O que você pensa que está fazendo, Carmem? - Se precipitou a gritar Álvaro, ao que foi contido por Carlos. 
- Acalme-se, Álvaro. Estamos num hospital...
- Obrigado por lembrá-lo disso. - Disse o médico, deixando os pacientes e virando-se para a porta.
- Boa noite, Doutor Hurtado. Eu vim buscar minha incontrolável sobrinha...
- Essa adorável e voluntariosa jovem? - Ele disse arrumando os óculos. Os cabelos do médico eram lisos e ralos, molhados pelo suor, a pele branco-avermelhada típica dos europeus que mudam para a América. O nariz era fino e os traços esguios e sérios. Os olhos pareciam deter mais vida que o resto do corpo, talvez menos apenas que as mãos calejadas.
-Pois é Doutor, voluntária e incontrolável. Vamos Carmem? - dizia o tio calmo, enquanto Álvaro ficava cada vez mais furioso.
-Titio, perdoe me, mas não posso ir. Olhe quantas pessoas aqui morrendo, precisando de ajuda, precisando no mínimo serem ouvidas. O resto do mundo tão preocupado com o dinheiro. Além do mais, se o senhor não se recorda, o senhor Garcia está aqui no hospital, ainda não sei onde, mas com certeza precisando de mim.
Carlos, Álvaro e Dom Fernandes muito insistiram, mas suas vontades não eram tão firmes quanto a de Carmem. Seu tio insistiu em levá-la, mas quando viu que nada a tiraria dali, acabou desistindo da ideia. Enquanto isso, Álvaro não se conformou em saber que a irmã mais nova estava lá, no meio de doenças e doentes, ensanguentada, suada, cansada. Álvaro ainda destilou algumas ameaças sobre a mãe desamparada após tudo que acontecera, enquanto Carmem só tinha tempo para desconhecidos, e sobre o pai deles que estaria a se remexer no túmulo ante tamanho desgosto, afinal não criara uma filha para aquilo. No entanto, Carmem ainda pensava em Garcia. Carmem continuou por ali, por mais algum tempo, ajudando todos que podia. Por fim, não suportando mais a angústia e ansiedade, acabou indo conversar com o médico a respeito de Garcia.
O doutor Hurtado assistiu a tudo sem intervir, continuando a atender os pacientes, mas agradecendo e retribuindo com um simpático sorriso cansado os esforços de Carmem: 
- És uma jovem muito gentil e determinada, senhorita. Precisamos de toda a ajuda possível aqui. Essas pobres almas não tem ninguém... - e os dois juntaram-se uma vez mais às enfermeiras, até que a noite já tivesse corrido tão longe que o calor se dissipara e apenas graças a velas podia se ver alguma coisa.
Com a noite alta, também cessaram de chegar novos pacientes e por fim, quando a exaustão já os dominava, o serviço estava normalizado. Ao menos havia agora tempo para descanso. 
- Venha, senhorita. - Disse o médico. - Vamos beber um pouco de água e comer alguma coisa..
- Eu.. eu.. gostaria de ver alguém se possível. - Falou Carmem com a voz vacilante de cansaço.
- Quem? - Ele disse retirando o jaleco de sobre a roupa tão suja quanto ele.
- Sabe, doutor, na verdade não houve o tempo necessário para relatar de onde surgi, não é mesmo? A história é meio longa, mas aconteceu uma tragédia no casamento de minha prima. Um amigo do noivo, senhor Garcia, acabou levando um tiro, por minha culpa, assim digamos. E foi por tal incidente que agora estou aqui. Eu vim para cuidar do senhor Garcia, mas vendo tantas pessoas precisando de ajuda, não pude conter me em ajudá-las. Enfim, gostaria de saber onde está o senhor Garcia. O doutor não teria como me levar para vê-lo?
O doutor Hurtado após ouvir a tal história bem intrigante, resolveu procurar por Garcia a fim de retribuir um pouco, tudo o que a jovem tivera feito para ajudar tantas pessoas. 
- Claro, senhorita, vamos procurar o seu amigo, quem sabe ele até mesmo já não saiu daqui.
- Espero, doutor, pois eu não sei o que faria se acontecesse algo terrível com ele.
Os dois deixam a sala carregada daquela mortalha da morte, saindo para o corredor e investigando outras salas onde poderia estar Garcia Contreras. 
- Qual foi a gravidade do ferimento, senhorita Carmem?
- Não sei bem ao certo, ele tomou um tiro nas costas, mas, acho que não foi tão profunda a penetração da bala, pois eu consegui tirá-la dele antes de trazê-lo até aqui. Onde o doutor acha que ele possa estar?
- É possível que ele tenha sido operado. Se a bala feriu o pulmão, teremos problemas. Mas se você já a extraiu - e ele a olhou com certo ar de admiração, ainda que envolto pelo cansaço que dominava o rosto dele - creio que não há razão para nos alarmarmos mais. 
Os dois chegam ao saguão do hospital, onde está tudo muito mais calmo do que quando da chegada de Carmem, mas ainda permanecia o cheiro funesto da morte no ar. O doutor Hurtado caminhou até o balcão improvisado da recepção, onde uma mulher sonolenta conferia alguns papéis.
- Lucia, você sabe onde está o senhor Garcia Contreras?
- E teria como saber, Raul? - Respondeu a mulher com ar desolado.
- Por favor, já pedi que não me chame assim. Tem ideia de onde possa estar? É um fino cavalheiro, estava bem vestido, tomou um tiro nas costas e creio que aquela adorável jovem não terá paz enquanto não o vir..
A mulher olhou por trás dele para a jovem rota por um instante. Carmem imaginou ver ciúmes nos olhos dela, mas isso se foi tão rápido quanto a latência que vem dos seus pés. 
- Acho que Felipe estava a operar alguém assim... deve estar no quarto dele...
- Ótimo. Venha, senhorita Carmem. Seu amigo está nas mãos de meu mais inspirado aluno e amigo. - O doutor diz com um sorriso de quem tenta animar as esperanças alheias.
- Doutor Raul, além de médico é professor?
- Fui, senhorita. Fui professor na Universidade de Madri. Mas, por favor, não me chame por Raul, chame-me de doutor Hurtado, esse nome carrega tristes lembranças. - Carmem percebe um tom amargo na voz dele, uma dor latente, mas antes que pudesse fazer a menção de interrogá-lo, o corredor branco que estava atrás do balcão de Lúcia abre-se para uma sala tão ou mais nefasta do que aquela em que ela estivera. Ali haviam muitas pessoas, mas todas tinham partes do corpo faltantes, alguns um braço, outros uma perna, haviam alguns sem olhos, o cheiro de sangue era forte e entre todos aqueles ensanguentados e feridos, um homem travava uma luta pela vida sobre o corpo de outro homem, sobre o corpo de Garcia Contreras.
- Felipe?!? - O homem parou a intervenção e virou-se para você e o doutor Hurtado, logo retornando ao que fazia.
- Diga Raul.. estou ocupado agora..
- Essa é Carmem, ela está aflita com o estado de seu paciente... e já pedi que me chame de Hurtado.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Peter: 1


Nova York - 1962 
- Viu o noticiário?
- Quem é você?
Paul olhou-o desconfiado: 
- Está dormindo ainda? Não reconhece seu irmão, porra? - Paul disse sentando-se ao lado de Peter no sofá velho, de fronte para a televisão onde passava uma reprise de I Love Lucy.
Peter esfregou os olhos meio atordoado tentando lembrar o que fizera na noite passada:
- Bem, o que aconteceu de tão importante?
- Sabe o vizinho do começo da rua? O Smith?
- Sei...O que ele fez? - Indagou Peter vestindo seu sobretudo.
- Passou no noticiário.. a casa deles foi invadida... mataram o coitado.. dezessete tiros, acredita? Mataram a mulher dele e a empregada também.
Nossa! Bem, ele sempre me pareceu um pouco esquisito, porem não imagino que tivesse algum motivo para ser morto dessa maneira. - Peter pegou um cigarro como se quisesse afastar o peso da notícia. - A policia deu alguma do motivo aparente?
- Roubo! O que mais? A gente devia comprar uma tranca nova pra porta... me arranja um cigarro? - Paul estendeu a mão para seu irmão mais velho.
-Talvez, más nesse mato tem cachorro. - Peter entregou o cigarro e deu uma olhada pela janela tentando ver alguma coisa anormal do lado de fora. - Que horas são agora?
Paul olhou o relógio, enquanto o irmão via pela janela o trânsito e as pessoas apressadas que caminhavam pela Rua Rector dirigindo-se para a ponte do Brooklyn:
- São vinte pras seis. Aliás, acho que vou comer, que já tá quase na hora de eu ir trabalhar.
- Preciso ir também, alguém me ligou ontem?
- Não. Acho que não. - Paul levantou-se tragando e foi para a cozinha, sendo seguido por Peter. - Esperando algum telefonema?
- -Sim, um colega que trabalha numa empresa em Manhattan ficou de me ligar a respeito de uma vaga. Acho que você o conheceu, lembra do Edward? Então, é ele.
Peter abriu a geladeira para ver o que havia para comer. Ele olhou para a garrafa de leite pela metade e o pote com um picles solitário boiando, além de uma maçã tão ressecada que parecia fossilizada. Paul respondeu-lhe, enquanto colocava um pouco de cereais numa tigela:
- Edward? Aquele com cara de nerd? Tem leite?
- Sim, ele mesmo. - Peter pegou a garrafa de leite e botou sobre a mesa. - E como tá o seu emprego? - Ele enfiou a mão no pacote de cereal e pegando o último punhado que restava.
- Tá bom.. - Paul mastigava  entre as palavras. - Meio paradão essa história de vigia... de shopping. Grana fácil... pouco serviço, só o horário que não é bom né...
Enquanto mastigava calmamente, Peter repreendeu o irmão:
- Paul, já disse para você comer devagar, vai acabar engasgando. Até que horas você vai ficar no trabalho? Estava pensando em ir tomar algo mais tarde se vc pagar, é claro - e ele riu.
- Ah  irmãozinho.. só volto de manhã, entro às 18:30 e saio à três e meia... aliás deixa eu ir me vestir. Se estiver em casa a gente pode fazer algo, mas sabe que a grana tá curta.
Paul se levantou e colocou a tigela na pia já um tanto cheia de louça suja. Peter fez o mesmo:
- Bem, acho que vou dar uma saída pra tomar um ar, depois de lavar a louça - e ele riu novamente. - Paul, vê se toma cuidado por ai cara, esse incidente com o Smith é de se preocupar, fica esperto. - Peter abriu a torneira e começou a lavar a louça.
- E eles iam roubar o que? Só se forem minhas dividas? - Paul disse saindo e rindo para a sala, dali para o quarto.
Quando Peter já lavava o quarto prato, viu o irmão passar já com o uniforme de segurança:
- Tô indo. Qualquer coisa liga lá no shopping, o número tá do lado do telefone.
- Beleza, qualquer coisa eu ligo, eu vou sair daqui a pouco também, se cuida.
Peter terminou de lavar a louça após mais alguns minutos, deixando os pratos no escorredor e se dirigiu para o quarto, onde também pretendia trocar de roupa. Ele estava vestindo a calça jeans, quando ouviu a porta de frente sendo forçada e abrindo. Rapidamente, ele colocou a calça, procurou algo que pudesse usar como arma, apagou a luz do quarto e se esforçou para ver se via quem estava adentrando. Olhou cautelosamente pela fresta da porta e viu dois sujeitos se esgueirando porta adentro. Ele alcançou seu taco de beisebol embaixo da cama, pensando sobre o que faria, ele não vira se eles estavam armados, mas eles não pareciam tê-lo visto também. Peter pensou em se esconder e olhou em volta de seu quarto. Havia o armário embutido na parede direita, à sua frente sua cama e depois dela a janela com as cortinas. Havia, ainda, o espaço atrás da porta que dava para o corredor e enfim para a sala. Ele ouvia os sujeitos se movendo pela sala. Resolveu então sair pela janela e se esgueirar. Foi justamente quando ouviu a porta do quarto ser aberta.
- Malditos, o que será que procuram? - Ele pensou, tenso e avançou agachado, temendo que o bandido tivesse uma arma.
Peter engatinhou até a quina da casa, permitindo-lhe olhar o movimento de fronte ao seu lar, agachado ao lado da cerca que divide o terreno da casa ao lado. Ele via as pessoas que circulam pela calçada alguns metros à frente da casa e os carros que circulam com intensidade, tomando o rumo de suas moradias, vindos de Manhattan, de seus trabalhos. Havia um carro estacionado na pista, a porta do passageiro aberta e apenas um motorista dentro dele. Enfim, Peter viu um homem vindo da casa em direção ao carro, ele carregava seu televisor nos braços. O carro era um Ford Custom 1957, mas a placa não era visível, ele teria de se aproximar e poderia ser visto. O homem depositou a televisão no banco de trás, enquanto Peter podia ver um segundo homem vindo de dentro da casa carregando o rádio em uma mão e uma pequena caixa de papelão na outra.
O primeiro homem, que carregou a tv, entrou no Custom azul e sentou-se ao lado da tv, recebendo em seguida do segundo homem o rádio e a caixa. Este baixou o banco do passageiro e sentou-se ao lado do motorista, sem que Peter os reconhecesse, mas tendo gravado seus rostos com precisão, com exceção do motorista, que deu a partida e arrancou dali.
Peter correu para dentro, passou pela porta arrombada e foi até o telefone. Tudo parecia nos conformes, exceto pela tv e pelo rádio que faltavam. Olhando em volta viu que algumas outras pequenas coisas estão faltando, como os cristais da mesa que sua mãe deixara, alguns porta-retratos.
- Delegacia de polícia, Susan falando. Boa noite, em que posso ajudar?



sábado, 22 de agosto de 2015

Carmem: 1


Cidade do México, 1918.
- O que acha sobre o casamento?
- Sagrado, sério. No entanto não tão essencial quanto querem nos fazer acreditar.
Ele sorri:
 - Entendo. Eu os acho particularmente chatos, mas não posso negar que a decoração está bem bonita. É convidada da família do noivo ou da noiva?
Ela mexeu a cabeça concordando:
- Realmente a decoração está bastante receptiva. Na realidade, sou parte da família da noiva, e poderia até mesmo dizer infelizmente. Digo isto porque com o enorme número de mulheres na família, os casamentos não param de acontecer. Mas e você? Convidado de quem?
- Sou amigo do noivo. Estudamos direito juntos em Madri. Gosto muito de Carlos e vim da Espanha para o casamento. E se me permite, ainda não conheci a noiva, mas se a beleza for de família, de certo ela deve ser tão linda quanto você. - Ele diz num gracejo, sorrindo.
Ela sorriu discretamente, mas mudou de assunto com o rosto corado:
- Certamente Madri deve ser um ótimo lugar para estudar e viver. Provavelmente as mulheres podem fazer mais que arrumar um bom pretendente com muitas alqueires. Embora muito me interesse por literatura, , aqui no México as famílias são por deveras provincianas. Pensava em estudar nos Estados Unidos, porém por conta deste pensamento retrocesso... O senhor sabe, não é mesmo? Se não sabe, saberá durante sua estadia.
- Que grata surpresa, confesso-te que pensava serem ainda muito provincianos os pais mexicanos e ainda não permitissem que as filhas estudassem e se emancipassem. Sabe como é, mesmo na Espanha, principalmente no interior, muitas mulheres são preparadas apenas para o casamento, em que teria interesses de estudo?
Como comentei, tenho muito interesse por literatura e estudar mais profundamente certas obras literárias me traria grande apreço. Leio tudo que posso, desde romances a livros de medicina. Também gostaria muito de ser professora. Me admiro muito com aquelas crianças aprendendo, e com a dedicação de alguém ensinando. Mas é exatamente assim, por isso mesmo creio eu, ser um sonho não realizável. Todos estão orgulhosos de Constanza por estar se casando com Carlos. Um ótimo partido aos olhos de todos. O senhor poderia imaginar o que diriam sobre uma jovem moça partindo com rumo ao desconhecido sem um marido para o devido suporte? Mesmo com o marido, é uma situação difícil de se imaginar. Em minha visão sonhadora, confesso – Carmem cochichou neste momento. - Mas pra ser sincera, casamento é algo tão sério, faz com que você nunca possa sair do lugar. Literatura nos leva aonde quer que desejemos estar. - Ela suspirou. - Pena que as pessoas não pensem assim por aqui.
Ele se permite um leve toque ajeitando o cabelo dela atrás da orelha. Então, a olha com encanto:
- Quem sabe agora com a promulgação da constituição mexicana pelo General Carranza as coisas mudem. Depois de anos de tirania de Profírio Diaz vocês tem a esperança de um novo começo e talvez você possa ter um começo diferente... conhece a Europa?
Ela retribuiu os olhares com certo receio e timidez:
- Claro. Se livros, palavras e poemas podem ser considerados pelo senhor como forma de conhecimento, talvez sim eu conheça a Europa. - Ela dá um leve sorriso. - Mas ainda não me disseste, como se chamas?
- Seria possível tamanha falta de cortesia de minha parte? - Ele diz ficando um tanto encabulado e corando o rosto pela falta, tirando o chapéu de feltro cinza claro com uma fita preta. - Meu nome é Garcia Contreras... - ele tomou a mão dela e beija-a nas costas fazendo uma leve reverência.
Ela segurou suavemente o vestido branco com detalhes vermelhos e retribuiu a reverência do cavalheiro:
- Muito prazer, senhor Contreras. Me chamo Carmem. Carmem Rúbio. Vieste apenas assistir ao casamento ou pretende passar uns dias?
- Confesso que estou disposto a abusar da hospitalidade de Carlos. A Europa está triste, fruto da Guerra. - Carmem percebeu a melancolia que perpassa a voz dele. - Mas confesso que a cada dia encontro mais encantos no México.. - ele sorri uma vez mais, estendendo-lhe o braço. - Se não me engano aquela é a carruagem que traz a noiva... - disse Garcia olhando para a pista de onde vem a carruagem preta, adornada com flores e puxada por dois belos cavalos brancos. - Penso que devemos entrar.
Com desânimo e timidez, ela respondeu olhando para a carruagem:
- Verdade. O tempo passou rápido, não é? Tens razão devemos entrar... - Carmem deu um sorriso. - Incomodaria o senhor sentar-se comigo?
- E poderia haver algo de mais interessante para se fazer aqui? - Garcia disse simpaticamente, enquanto os dois adentram a nave da Igreja, repleta de flores, seguindo pelo tapete vermelho e passando pelos outros convidados, que também se aglomeravam na entrada ansiosos pela chegada da noiva e agora urgiam para tomar seus lugares.
Garcia e Carmem sentaram-se do lado da família da noiva, na segunda fileira, ao lado de irmão dela, Álvaro, e da esposa dele, Magnólia. A seguir estavam sua irmã, Valência, e o seu irmão caçula, Pablo. Atrás de deles continuavam os tios e primos da sua numerosa família. Quase não couberam todos na lista.
Na primeira fileira estavam a mãe de Carmem ao lado de sua tia Amanda, mãe de Constanza, a noiva, que não continha as lágrimas de felicidade. A mãe de Carmem estava ao lado dela e também não conseguia conter o choro que borrava a maquiagem. A jovem muito bem sabia como sua mãe sempre sonhara com o casamento das filhas.
Carlos estava em pé no altar, muito elegante em suas roupas militares. Desde que retornara da Europa, o pai dele havia conseguido uma promissora carreira militar para o filho querido. Carlos parecia nervoso e inquieto, como se a noiva fosse escapar.
Tão logo sentaram-se, Álvaro olhou para Carmem com o olhar severo de irmão mais velho:
- Onde você estava? Não consegue ficar quieta um minuto? - Magnólia puxou o braço dele:
- Não é hora disso, querido..
A marcha nupcial se iniciou e todos levantaram olhando para a entrada da Igreja.
A noiva entrou deslumbrante, com um vestido de cauda grande, que era segurada por duas belas meninas, filhas de uma prima e confidente. Quando passou ao lado de Carmem, a olhou com um discreto sorriso de nervosismo, acompanhada pelo pai, Dom Fernandes, que caminhava passo a passo lentamente. Após cruzar o tapete vermelho, ele entregou a filha no altar para Carlos, que com um belo sorriso o cumprimentou e pega a mão de sua tão esperada noiva. De repente, a mãe de Carmem lembrou-se dela, porque não a tinha visto ainda. Carmem era muito paciente e talvez até detalhista demais com tudo, por isso havia se atrasado e não tinha chegado à igreja junto com sua mãe. Dona Mercedes, ao virar pra trás à procura de sua filha Carmem, levou um enorme susto ao vê-la ao lado de um rapaz. Porém deu um gracioso sorriso, afinal Carmem não era muito de conversar e fazer novas amizades, muito menos com homens:
- Filha. precisamos conversar mais tarde! - Disse Dona Mercedes, apreciando a novidade, que era ver a filha sentada, ao lado de um jovem rapaz esbelto no casamento de uma sobrinha que era quase uma filha para ela.
-Está bem mamãe, agora não é hora pra isso, vire-se. - Retrucou Carmem que voltou-se para conversar com Garcia. - Mil perdões por meu irmão, ele é sempre assim mesmo.. e quanto à mamãe, está simplesmente achando novidade eu conversar com alguém diferente. Cá entre nós, às vezes, acho que ela pensa que não tenho língua..
Ele sorriu diante do comentário e enlaçou a mão dela sob a dele, virando-se para os noivos.
O padre Eusébio iniciou suas palavras consagrando aquele amor ao Senhor e explanando sobre a origem sagrada do matrimônio. Ele apresentou suas considerações e lembranças da família e da infância dos pombinhos, rememorando suas comunhões, crismas e batizados. Passou rapidamente sobre a felicidade da família e enfim celebrou os votos de união eterna:
- Carlos, você diante deste altar, de nosso senhor Jesus Cristo e da Virgem Santíssima, jura honrar, cuidar, prover e amar Constanza na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nas certezas e nas dúvidas, na mocidade e na velhice, até que a morte os separe?
Carlos olhou para a noiva, os olhos castanhos dele cintilavam fixos aos de Constanza. Alcançou a aliança dourada e trazendo-a até a mão da noiva, enquanto a fazia deslizar pelo dedo: 
- Juro!
- Constanza... - prosseguiu o padre, mas foi interrompido pelo barulho de tiro dado na entrada da porta.
O tiro fez todos olharem para trás. Adentrava a igreja um jovem, que era enamorado por Constanza há muito anos. Carmem apavorada num salto abraçou Garcia se acolhendo em seus braços.
-Senhorita Carmem, tudo bem? - Garcia perguntou assustado, porém feliz por tê-la em seus braços e sentir-se a sua fortaleza.
-Me perdoe senhor Garcia - disse Carmem o soltando levemente, com ar de quem queria continuar ali. - Eu morro de medo de armas, o que está acontecendo afinal?
Enquanto o salão estava em alvoroço, e muitas pessoas dali tentavam sair às pressas, Carlos ficou totalmente indignado com aquele absurdo e tomou a direção do causador da confusão. O recém chegado apontava a arma para o noivo, que vinha em sua direção com Constanza agarrada em seu braço, enquanto gritava:
- Paolo, o que está fazendo aqui? Saia já daqui!!!
- Ah, ele vai sair sim.. - disse Carlos bufando, enquanto os convidados que haviam iniciado um tumulto começam a se aglomerar e observar tentando entender a situação, alguns gritavam palavras para que não se fizesse aquilo na casa de Deus, mas o novo disparo de Paolo acertando o teto silenciou a todos. 
- Vá para o inferno, Constanza, você e seu noivo almofadinha. Eu vim informá-los, meus caros, que vocês estão sendo pilhados de suas posses.. - Quatro outros homens armados entraram pela porta, enquanto muitos mais surgiram à cavalo na escadaria trazendo os jagunços de Dom Fernandes desarmados e sob a mira das espingardas. - Não aguentaremos outra ditadura e uma nova constituição de mentira. Viva Zapata. Viva o povo mexicano! - Ele disparou uma vez mais para o alto, sendo seguido pelos quatro homens e os muito mais lá fora. Depois, abaixou o rifle e apontou para Carlos. - Agora eu agradeceria se todos deitassem no chão e se livrassem de suas jóias e dinheiro...