sábado, 7 de novembro de 2015

Márcia: 1

Praga - 1901

- Por que esse ar tão sombrio?
- O que sentes, exatamente, ao ponto de lhe gerar tal sensação? Seriam estes meus olhos cansados ou alguma coisa em meu próprio ser que talvez eu ainda não tenha percebido? Mas, por favor, perdão, não gostaria de ter passado algum ar confuso...
- De modo algum.. não posso negar que vejo o cansaço nos teus olhos, mas também vejo um ar sagaz. - Disse o monsenhor com o ar sábio que tinham todas as palavras proferidas por seus lábios velhos e ressecados. - Uma jovem como você deve ter melhores companhias do que um velho como eu...
- A sabedoria é uma velha e boa amiga do tempo, certamente. - Márcia disse enquanto sorria levemente. - Não creio que as tenha, o que eu poderia julgar como sendo uma companhia mais adequada? Consigo observar fatos que alguns jovens simplesmente não compreendem, estão afogados em divertimentos tolos que a nossa atual sociedade tem a oferecer e deixam-lhe escapar os detalhes sutis que coexistem com o resto, mas acredito que talvez seja uma boa ideia nos aconchegarmos naquele café, o senhor aprecia a bebida? Eu sei, deve soar estranho ser convidado por uma mulher, espero que não veja isso como indelicadeza da minha parte. E não se preocupe, estou em boa companhia.
- De modo algum, minha jovem. - Retrucou o monsenhor aceitando o convite e tomando a direção do café. - Mas creio que irei tomar um chá, pois com a idade, já não é qualquer coisa que me desce bem ao estômago. E seu pai sempre foi um bom amigo, quase que um irmão, eu diria... Mesmo que tenha abandonado a Igreja, nunca deixou de ter Deus no coração. - O monsenhor sorriu como se lembrasse de boas coisas do passado. - E vejo em você esse mesmo excesso de inteligência que via nele. Mas diga-me, afinal, o que a trás até Praga?
- Ah o senhor sabe... - Márcia falou com a cabeça baixa e uma leve expressão triste. - Depois que ele faleceu, as coisas tornaram-se mais difíceis, principalmente para a minha mãe, o afastamento da igreja, bom eu concluo como a causa serem as pesquisas ousadas no trabalho dele, afinal a medicina sempre exigiu muito dos profissionais. Mas mesmo assim ele tinha Deus no coração, como o senhor mencionou. Ele estava fazendo umas pesquisas inovadoras, apesar de não entrar em detalhes com a minha pessoa. O excesso de trabalho enfraqueceu a sua saúde, bom, mas isso já fazem três anos. Vim até aqui por estas razões familiares, ele tinha uma propriedade aqui, creio que  senhor deve recordar, um pouco afastada da cidade, eu evitei vir antes por causa das lembranças. - O sorriso dela se tronou melancólico. - Mas com a doença de minha mãe, o resto dos assuntos familiares ficou sob minha responsabilidade, acho que ela, simplesmente adoeceu de tristeza, ela não vai conseguir superar a ausência dele, nem mesmo com a ajuda do tempo. O laboratório de meu pai ficava na propriedade, vou avaliar o que faremos com a casa e verei com a universidade em que ele dava aula se posso doar os livros de medicina dele para a biblioteca.
Quando ela terminou de explicar os motivos de sua vinda, já estavam sentados no café. O monsenhor fizera sinal ao garçom, que veio prontamente.
- Traga um chá para mim e um café para a senhorita...
- Sim, monsenhor. - Falou o jovem se retirando.
- Entendo. Lembro-me da propriedade. Está um pouco abandonada, mas tenho certeza que encontrará bom valor por ela. Posso pedir a um de meus secretários que a acompanhe até lá. Eu mesmo iria, mas tenho muitas obrigações clericais, afora o peso da idade. Com fé em Deus sua mãe há de se recuperar. - O velho religioso tentou dar um sorriso animador. - A universidade ficará satisfeita com a doação, afinal de contas seu pai foi um dos médicos mais... Inovadores... De nosso país. Irei sugerir, inclusive, que façam-lhe uma justa homenagem aproveitando sua visita...
- Aqui está. - Disse o rapaz entregando o café e o chá e deixando se perder um instante na beleza austera de Márcia, até que o pigarrear do monsenhor o lembrou de dar-lhes licença. Ela, por sua vez, demorou-se olhando para o interior da xícara de café.
- Realmente acredito que conseguiremos um bom valor para a propriedade. Bom, creio que o problema são os rumores folclóricos referentes ao local, sabe como as pessoas são supersticiosas. Certa vez, meu pai teve uma governanta trabalhando em sua propriedade que podia jurar que ele estava "brincando com os mortos" e estes rumores espalharam-se juntamente com outros. Eu até mesmo estava lendo ontem no jornal, falava sobre possíveis assombrações na casa, que falta de notícias para postarem em um jornal. Às vezes chego a pensar que existam pessoas que desejam prejudicar meu pai mesmo após ele ter morrido. Um homem tão bondoso e brilhante, que mesmo assim atraía pessoas invejosas. - Ela parou e deu um gole de café. - É uma vergonha, considerando a ciência que temos hoje, que as pessoas ainda acreditem em teorias pseudo-medievais. Meu pai era realmente muito religioso, mas aliava-se à ciência. Espero que o comprador não seja uma pessoa que acredita em tudo, ou demoraremos para vender a propriedade. Mas eu acho graça desta história toda... 
- Não se pode dar ouvidos a essas crendices populares, minha cara. - O monsenhor lembrou com um sorriso de total descrédito. - O que o povo fala... - Ele deu um pequenino gole no chá. - Não se escreve... Ao contrário do que pensam os jornalistas desse pasquins xinfrins... - O velho permitiu-se uma risadinha. - Certamente, que alguém de posses o suficientes para comprá-la não será influenciado por esses pueris contos campesinos, engraçadinhos nos melhores casos, débeis nos piores... - Ele deu outro gole. - O legado do seu pai nunca seria maculado por tais crendices...
- Ainda existem pessoas de razão neste mundo, nem tudo está perdido. - Márcia recuperou levemente o sorriso e mexeu o café lentamente com uma pequenina colher. - Pretendo em breve ir até a propriedade, mas e o senhor? Como estão os seus afazeres na igreja? Sempre que posso, procuro ir à minha cidade, é algo que faz realmente bem a mim, nada como um pouco de paz nesses dias mundanos  - Ela parou de mexer o café e depositou a colher no pires. - Levo a minha mãe quando vou e tem sido o melhor remédio que posso oferecer a ela, nem sempre posso dedicar meu tempo a cuidá-la, o senhor sabe, a vida de uma professora em uma escola feminina tem seus contratempos, mas gosto de exercer a profissão... - Deu, então, mais um pequeno gole de café.
- O trabalho enobrece a alma e louva ao Senhor, minha filha. Tenho certeza que várias famílias podem dormir em paz tendo as filhas bem educadas por uma professora tão digna. Quanto a mim, bem... O que pode dizer um velho bispo como eu? Cuido de meu rebanho, oro a Deus e tento manter Praga longe dessa política vil que se espalha por aí... Política desses trabalhadores libertinos, comunistas e ateus... - O monsenhor fez o sinal da cruz e uma cara de desprezo. - Mas como eu disse antes, não poderei acompanhá-la, mas não terei problemas em destacar um secretário para levá-la...
- Eu realmente compartilho do seu desgosto por esse tipo de cidadão amante de balbúrdia, acho que Deus na vida das pessoas já resolve a maioria dos problemas. O fato é que poucos possuem essa visão da realidade... Acho que já esta ficando tarde, creio que nós devemos nos recolher, mas aceito a sua ajuda referente ao secretário e agradeço pela sua preocupação. Não se preocupe, irei passar na sua igreja para ver o culto antes de ir, mas vou ficar aqui em Praga tempo o suficiente. Além de resolver estas questões burocráticas da propriedade de meu pai, quero ver a sua igreja e andar um pouco por esta maravilhosa cidade, muitas vezes me pego com saudades daqui...
- Não há cidade como esta no mundo, minha filha. - O Monsenhor declarou com satisfação, usando os braços velhos pra se levantar.
Eles pagaram a conta e Márcia o acompanhou de volta à Igreja de São Vito.
- Venha ver a missa pela manhã e logo depois pedirei que um de meus secretário vá contigo. Creio que Amadeu será a companhia ideal... Um homem sério e devoto... - O velho sorriu timidamente. - Vá com Deus, minha filha...
- Até amanhã pela manhã e muito obrigada pela ajuda e pela incomparável companhia...verei-o durante a missa...
Boa Noite.
Márcia virou-se, saiu a passos calmos e por um breve instante admirou o céu nublado. Ela atravessa a rua pouco movimentada àquela hora da noite e ao chegar ao lado oposto, admirou a Igreja de São Vito. Observou que o bispo já havia adentrado na igreja, virou-se novamente em direção ao hotel onde estava hospedada a poucas quadras dali.
Havia pouca gente pela rua naquele princípio de noite. Os mendigos foram ficando menos numerosos conforme Márcia se afastava da Igreja. Ao chegar ao hotel, no entanto, um homem que saía do edifício parou na frente dela impedindo-a de entrar.
- Com licença... - Ele disse tirando o chapéu e sorrindo. Era jovem, mas usava uma barba que dava ar mais velho e respeitável. - Eu estava procurando pela senhorita...

domingo, 1 de novembro de 2015

Carmem: 5

- Deixe-o aí no chão, com cuidado, até eu acender algumas velas, por favor. - Carmem acendeu lampiões e velas. Depois, ordenou aos capangas que levassem Garcia para um dos quartos de hóspedes no andar superior. - Doutor Hurtado, por gentileza, queira me acompanhar até lá em cima para prescrever uma receita.
Todos subiram sob a luz do candelabro de prata que Carmem tomara nas mãos, com as três velas acesas. Logo chegaram a um dos quartos, onde os homens colocaram Garcia Contreras sobre uma cama, sem arrancar dele um murmúrio sequer. Blanco e Hurtado a acompanharam, e enquanto o médico anotava o nome dos remédios em um papel, Blanco olhava ao redor.
Juan deu um passo à frente com a chapéu na mão e cara de cão sem dono: 
- Mais alguma coisa, senhorita?
- Sim, Juan, por favor, assim que clarear o dia, vá até a fazenda, e chame meu irmão Álvaro e sua esposa, e também Carlos, o noivo. Mande todos para cá. É tudo Juan, obrigada. - Carmem observou os dois saírem e depois se dirigiu ao doutor Hurtado. - Doutor, poderia me fazer o favor de explicar tudo?
- Aqui estão os remédios que ele irá precisar, Carmem. Irão ajudar com a dor. Os ferimentos devem ser lavados uma vez por dia e procure fazer compressas e dar a ele muita água. Comida apenas se ele recobrar totalmente a lucidez. Não o deixe se movimentar e evite muita confusão ao redor dele. É preciso que tome conta dele todo o tempo. - O médico estendeu o papel para ela, enquanto Blanco recolhia a padiola. - Boa sorte, Carmem. Espero que ele melhore logo e aguardaremos sua ajuda...
- Boa noite, senhorita Rubio... - Blanco despediu-se acenando.
- Eu estarei no hospital amanhã à tarde, doutor Hurtado, e obrigada pela chance. Até logo, Blanco, e muito abrigada pela ajuda. Digam a Lúcia que lhe mandei um abraço. Querem que eu os acompanhe até a porta?
- Não é necessário, minha cara. Mas não se apresse, tem de zelar por seu amigo... 
Hurtado e Blanco sumiram pela porta e Carmem ainda escutou os passos deles seguindo pelo corredor, enquanto olhava a face pálida da figura enferma de Garcia Contreras. Ela pegou em suas mãos e recordou tudo que acontecera desde o momento do casamento desastroso. Nesse instante, ela lembrou de sua prima Constanza, de como devia estar triste por todo o acontecido. Pensou no seu irmão, que devia estar furioso, e sorriu sozinha, mesmo sabendo que meia dúzia de palavras nem sempre resolviam seus problemas com Álvaro. Carmem olhou atentamente para Garcia imaginando se ele estava dormindo ou simplesmente descansando. Não entendia porque o destino teria lhe reservado tudo aquilo.
- Senhor Garcia? - Carmem falou quase que sussurrando.
Ele permaneceu como estava. A respiração lenta, a face pálida, nem parecia aquele homenzarrão simpático e atencioso de antes, lembrava mais uma criança desamparada e indefesa agora.
Carmem percebeu que ele estava dormindo profundamente, então resolveu tomar um bom banho e tirar todo aquele sangue e aquele cheiro de morte de seu corpo. Estava com medo de deixar Garcia sozinho, mas por alguns minutos não teria problema. Foi até o seu quarto, que era ao lado do que estava hospedado Garcia, achou algumas roupas, toalhas e foi tomar banho, passando antes mais uma vez pelo quarto de Garcia, pra ter certeza de que estava tudo bem. Ela não entendia porque, mas olhar aquele homem ali, vivo, respirando, lhe dava vontade de sorrir, deixava-a feliz. Depois de tudo que havia acontecido, Carmem precisava mesmo era relaxar.
Ela chegou-se até a banheira coberta de azulejos espanhóis como tanto exigira sua tia, quando da reforma há alguns anos. Não se lembrava disso exatamente, mas seu velho pai ridicularizara tanto seu tio Fernandes pelo gasto para por água no velho casarão, que lembrava das conversas e daí olhava os finos azulejos lembrando-se de seu falecido pai.
Carmem torceu a torneira da banheira branca e viu a água jorrar lentamente para enchê-la. A água estava fria, mas depois de um dia tão intenso, não carecia mais de calor, apenas de tirar o sangue seco que a recobria. Tirou a roupa e se deitou na banheira antes que ficasse de todo cheia. Sentiu um alívio tão intenso, que chegou a soltar um suspiro. Os músculos dela relaxaram em conjunto, como se todo o peso do mundo fosse retirado de suas costas. A água lambeu seu corpo, retirando a sujeira e trazendo um frescor em meio ao calor do cansaço.
Os cabelos dançaram ao seu redor, enquanto ela submergia na banheira, fazendo um pouco da água transbordar. Suas costas apoiaram-se então na louça da banheira e seus braços nos beirais, enquanto ela esticava as pernas e colocava a cabeça deitada o suficiente para apenas seu nariz e olhos permanecerem fora da água. Uma das mãos pegou a grossa bucha de piaçava e o sabão e com uma placidez serena correu-a a arranhar levemente o corpo, libertando-o da sujeira que misturava-se à água. Fez-o por algum tempo, sentando brevemente para lavar os cabelos, mais um tanto da água transbordou. Recostou-se uma vez mais, deixando-se embalar brevemente por aquela tranquilidade. Paz, enfim...
Despertou tremendo de frio e com o corpo enrugado na banheira.
Assustada, Carmem percebeu que adormecera ali, não tinha noção do tempo que havia ali ficado, apenas sabia que se sentia muito melhor, ainda que o pescoço doesse um pouco pela posição. 
- Garcia! - Ela pensou. Havia esquecido dele. Agarrou a toalha vermelha com seu nome bordado em branco, secou o corpo rapidamente e pegou um vestido meio gasto, que estava na casa há algum tempinho. Quando saiu do banheiro, ainda com o toalha em mãos secando os longos cabelos lisos, foi caminhando apressada até o quarto onde estava Garcia.
Chegando à porta do quarto, Carmem viu Garcia ainda deitado, praticamente na mesma posição. A noite continuava lá fora podia ver pela janela. Não devia ter dormido muito, apenas cochilado. Aproximou-se alguns passos, entrou no quarto enquanto sentia a saborosa brisa da noite que vinha da janela. Ouviu a voz de Garcia, um murmúrio, que parecia vir do corredor agora. Antes que pudesse se sobressaltar, ouviu também um gemido:
- Caa.. Arm.. Mem?
Carmem se abaixou ao lado de Garcia e pegou em sua mão:
- Sim, senhor Garcia, estou aqui. Está sentindo dor? Como está se sentindo?
- O...O... On... De... E... Es.. Est..Amos?... - Garcia perguntou com dificuldade.
- Estamos na casa da minha família, perto do hospital. O senhor foi baleado, lembra-se? Fique tranquilo, essa noite cuidarei de você e logo pela manhã você verá seu amigo Carlos e todo mundo, está bem? Relaxe. Não tente fazer esforço. - Carmem sorriu.
Garcia esboçou um sorriso, que logo se esvaneceu. Na testa dele, gotas de suor se formavam: 
- Ca-Ca... Ca..Rrr..Mem... - Ele tenta sorrir uma vez mais. - Nã... Não... Te-tenho c...Como a... Grade-de... Ssss... Cer... Você é um anjo...
Carmem passou a mão na testa de Garcia com carinho e cuidado: 
-Tem como agradecer sim, se recupere logo, está bem? Agora não faça mais esforços...
- Há... Há... Uma... Uma coi... Sa... Que... Que preci-ci... So dizer... - Ele continuou tentando sorrir e ela sentiu o calor na testa dele ao passar da mão por ela.
- Se se sente tão aflito, fale senhor Garcia, mas acalme-se por favor, está bem?
A feição dele relaxou um pouco. O suor continuava a brotar na fronte de Garcia, enquanto o sorriso se descontraiu:
- Ho... Je... Eu vi... Senti... Que po-p...Pod... Dia te-ter pe-per-dido tu... Tudo... E... E se... Se... N... Não fo-fos-se po-por você... E-eu n-não est.... Estaria a-a-aqui... Voc...voc..cê é... é... é... Um an-anjo, Ca-Car..mem... - Ele ergue uma mão trêmula e vacilante que tenta estender até seu rosto.
Carmem sorriu mais uma vez e falou baixo ao ouvido de Garcia:
- Ouça, senhor Garcia, se acha tudo isto mesmo, relaxe, está certo? Pode ser perigoso se esforçar agora e não me agradeça tanto, afinal, se não fosse o senhor ter levado aquele tiro, quem sabe eu é que não estaria aqui. Descanse está bem? Ficarei aqui ao seu lado até amanhecer e Álvaro vir até aqui nos levar para a fazenda, onde estão todos. Ainda estou cuidando de você. - Ela deu um beijo doce na testa suada dele.
Quando os lábios sentiram o sabor salgado do suor dele, enfim as palavras escaparam livres dos lábios de Garcia Contreras: 
- Eu amo você...
Carmem ainda sorria, mas agora um tanto espantada.
- Senhor Garcia, está com febre e delirando. Tente dormir, está bem?
Ainda assim, Garcia Contreras não desistia, mas antes que tornasse a falar, Carmem Rubio ouviu os passos que enfim chegaram à porta: 
- Senhorita Rubio... - Veio a voz de Juan de trás da porta.
Carmem se espantou pensando o que estaria Juan a fazer àquela hora na porta, logo no momento em que Garcia estava delirando. Ou estaria ele dizendo a verdade? Carmem sentiu-se confusa, mas preferiu apenas sorrir para Garcia e falar com Juan, mesmo ainda de joelhos ao lado da cama:
- Sim, Juan, eu estou aqui, entre. Aconteceu alguma coisa?
- Gostaria de dizer pra senhorita que deixamos tudo arrumado depois que os doutores saíram. Estamos lá embaixo no quarto dos criados e vamos trancar tudo agora... - Disse o serviçal com olhar humilde, segurando chapéu com as mãos e olhando para baixo.
- Ah, claro, Juan, muito obrigada por tudo. Se precisarem de algo eu estarei aqui cuidando do senhor Garcia, é só vir até aqui me chamar.
Carmem olhou para Garcia, que a olhava com ar de quem precisava dizer algo. Ela sentiu algo que não tinha sentido antes, talvez apenas alívio por tê-lo salvo, por estar tudo indo bem. Ou talvez... Talvez... Bem, talvez ela não soubesse o que estava sentindo.
- Boa noite, senhorita. - Disse Juan partindo.
A jovem continuou a ouvir os passos dele seguindo pelo corredor até a escada, mas os olhos dela e sua mente estavam voltados para Garcia Contreras, esbaforido em seu esforço de falar:
- Nã... Não me... Me tome por l... Louco... Mas se... Se... Se est... Tou vivo... É... É... No esforço de... De... Con... Fessar Meu... Meu amor... Por ti... - A cabeça dele afundou-se pesada no travesseiro, enquanto o suor tornava a brotar-lhe farto no rosto. As sobrancelhas escuras e grossas dele estavam úmidas, enquanto os lábios sôfregos, ressecados.
Nesse instante, Carmem sentiu seu coração bater mais forte, e assustada pensou em tudo que estava acontecendo:
- Senhor Garcia, está febril e delirando. Acalme-se, está bem? Vou fazer algumas compressas e logo se sentirá melhor. 
Mais uma vez, Carmem o beijou na testa, que estava extremamente quente e saiu apressada, atravessando o longo corredor. Ela desceu as escadas e foi até a cozinha, onde apanhou água, vinagre, um pano seco e limpo, junto com uma bacia. Lembrando das recomendações do doutor, também um copo de água. Subiu o mais depressa que pode. Quando chegou novamente ao quarto, viu Garcia impaciente olhando para porta, parecia que havia ficado olhando para ali o tempo todo, esperando Carmem entrar e cuidar dele.
Os lábios dele se torceram num sorriso simples: 
- Es... Est... Tou bem... Fi-fi... Que tran... Qui... La... - E o sorriso se desfez, tornando à face dele o peso da dor.
Carmem sorria percebendo que ele queria parecer bem, mas rapidamente pegou o pano e a água. A jovem subiu a blusa dele e mesmo sem querer, acabou observando o corpo de Garcia, que era muito esbelto. Ele tinha alguns músculos visíveis apesar da bandagem dos ferimentos.
- Carmem, o que você está fazendo? - Ela perguntou pra si mesma, pegando o pano e colocando na barriga de Garcia. 
Ela aprendera com a sua avó, que a febre não pode ser curada pela testa e sim pela barriga e pelos pés. Lembrou-se também de que, quando ficava com febre, alguém sempre colocava meias com vinagre em seus pés, o que era bem desconfortável, mas fazia parar a febre rapidamente. Garcia acabou por aquietar-se e tornando os olhos para ele, ela percebeu que ele adormecera uma vez mais. O suor logo diminuiu, assim como o febre que cedeu.
Mais tranquila, Carmem pode observa-lo com o cuidado preocupado, enquanto ele serenizava sobre a cama. O sono pesava, fazendo os olhos cerrarem-se, enquanto um farto bocejo escapou-lhe.
- Talvez quando Garcia acordasse, ele parasse de dizer que a amava, afinal, nem a conhecia direito. - Pensou Carmem, que achava que se tudo não fosse tão trágico, seria até excitante e por que não dizer romântico? - Carmem, Carmem! - Ela dizia para si mesma várias vezes, nas quais olhava com outros olhos para Garcia.
Era belo o senhor Garcia afinal de contas. Mesmo ferido e empalidecido pela perda de sangue, Carmem lembrava-se bem do sorriso garboso com que a abordara na porta do casamento, enquanto ela aguardava entediada o início da cerimônia e tentava fugir do calor. Ele era alto e tinha uma elegância até mesmo nesse momento debilitado. O bigode fino e bem cortado, preto como as grossas sombrancelhas e os cabelos, agora, de todo desalinhados. Era nitidamente um estrangeiro, com seus jeitos europeus, Garcia Contreras, o que talvez a fizesse pensar enfim em ver as terras do Velho Mundo, como já oferecera seu tio Fernandes.
Uma vez mais, ela ergueu os olhos piscando-os com força para despertar da sonolência que pesava sobre a mente. Encontrou, despreparada, Garcia a encarando sorrindo. Em seguida, olhou pela janela e percebeu que estava amanhecendo.
- Senhor Garcia, está clareando, logo nós poderemos nos reunir aos outros na fazenda. Está se sentindo bem? - Logo colocou a mão em sua testa e percebeu que a febre havia baixado. - Sinto que a febre passou, em alguma ocasião lhe contarei o que o senhor delirou durante a noite.
Garcia manteve o sorriso, parecia ter sido removido o fardo que pesava sobre ele.
- Estou bem... Ainda dói e lateja um pouco aqui onde tomei o tiro, mas já estou melhor. E confesso estar um pouco com fome, mas não resisti a admirá-la nessa penumbra do amanhecer, minha heroína... Também gostaria de um pouco de água se não for abuso...
-Ah, Garcia, claro que não é abuso nenhum! Me perdoe, havia esquecido depois de tudo que você poderia sentir fome. Aqui tem um copo com água e eu vou até a cozinha preparar algo que você possa comer. Não queria lhe deixar aqui sozinho, mas se sentir algo chame, por favor, está bem? - Carmem deu novo beijo leve na testa dele, sabendo que se sentia fome, é porque estava melhor. Saiu.
Já no corredor o estômago dela lembrou-a de que comer lhe faria bem também. O gosto da manhã ainda ocupava sua boca. Quando começou a descer a escada, viu alguém saindo pela porta da frente. Imaginou ser Juan.
- Juan, você está aí?
A porta tornou a se abrir, quando ela estava na metade da escada e apareceu o rosto de Juan:
- Bom dia, senhorita Carmem. Estava indo até a fazenda chamar seu irmão e o senhor Carlos, como havia me mandado... - Disse o funcionário de seu tio em tom humilde e segurando o chapéu na outra mão que não abrira a porta.
- Ah, é claro Juan, como pude me esquecer disto! Obrigada. Por favor, Juan, não deixe mamãe vir junto. Ela é muito sensível, e os ferimentos do senhor Contreras ainda não estão tão bem cicatrizados. 
Juan concordou com a cabeça, colocou o chapéu e saiu.
Ela passou e foi em direção à cozinha para preparar um maravilhoso chá, que sua avó sempre fazia para ela, quando ficava doente. Lembrou-se mais de sua avó, a pessoa mais maravilhosa que Carmem já conhecera. Ela preparou também torradas, já que o pão não estava muito novo, levou também uma maçã e mais um copo de água. Achou que aquela era a alimentação ideal para alguém que estivesse em repouso.
Ao cruzar a sala vinda da cozinha, ouviu o barulho da batida na porta, um tanto abafada, além das palmas que se seguiram anunciavam que havia alguém lá fora:
- Ôôô de casa.. - Seguiu-se a voz masculina, sendo respondida por outra, que você reconheceu como a de Esteban.
- Bom dia, senhor delegado...
- Bom dia, homem. Don Fernandes está?
- Não, senhor. Ele está na fazenda desde ontem por causa da festa de casamento da filha dele, Dona Constanza com Don Carlos.
- E há alguém em casa ou estão todos lá?
- A Dona Carmem está aí...

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Elizabeth: 1

Londres - 1971 


- Ei, ei... Tá sabendo? Vai ao show? Uau, vai ser o máximo...

- Vou sim, estou muito animada para ir ao show... Que horas será mesmo?
- Já passa das nove... Estou com os ingressos aqui... Pink Floid, ai ai... Eu amo o David Gilmour, vai ser o máximo... - Ella sacudiu o panfleto na mão de ansiedade. - Mas acho melhor irmos, porque se não, não vai ter ingresso...
- A sua ansiedade é tanta que já se esqueceu que os ingressos já estão com você, mas vamos embora então...
- Eu ando fumando muita maconha mesmo... - Ella deu uma daquelas típicas risadas de quando esquecia as coisas. - Falando nisso, o que você arranjou pra gente se divertir lá? - Ela levantou-se e fechou a porta do quarto.
-  Vou me divertir do meu modo, você sabe que ando careta, depois do que aprontamos há alguns meses. Tive que me conter, mas se pintar algo estamos ai... - Elizabeth também deu uma risada, mas bem sarcástica.
- Beleza, beleza... Vamos então?
- Demorou, vamos logo...
As duas desceram as escadas para ir ao show. Da cozinha ouviram a mãe de Elizabeth chamar:
Já vão sair? Não querem comer alguma coisa antes, meninas?
- Mãe, não dá, já estamos com o tempo apertado. Você quer algo? - A jovem Elizabeth perguntou à amiga Ella.
A mãe saiu à porta da cozinha enxugando as mãos no avental. Ela estava um tanto descabelada e com ar cansado: 
- Não vão chegar tarde ou seu pai acaba com você...
- Pode deixar Dona G, vamos voltar na hora... - Brincou Ella.
- Nada de arranjar confusão... - insistiu a mãe.
- Sim, senhora, tchau, mãe... - Elizabeth revirou os olhos e partiu.
As duas saíram de casa e começaram a cruzar as ruas de Londres. Muitos carros circulavam pelas vias e um grande numero de pessoas ia em direção ao show na região de Wembley. Elizabeth e Ella foram cruzando as ruas um tanto misturadas à multidão. Os jovens que se dirigiam para a casa de shows conversavam, cantavam e deixavam um tanto desconfortável os mais velhos, que voltavam para seus lares. Chegando à porta do show, a fila já era grande.
- Caraca, Ella, a fila já esta enorme, vamos ter que dar um jeito de chegar até o palco, não quero ficar no fundão, é muito chato.
- Não te conto... Vem... - Ella saiu puxando a amiga pela mão na direção oposta à da fila. Logo as duas estavam circundando o prédio. Dobraram a esquina e Elizabeth já se sentia impaciente com a enrolação de Ella em lhe responder. Foi então que ela viu a entrada dos fundos, os seguranças e o pessoal do apoio entrando. - Vem, eu conheço um cara...
-Você é maluca mesmo, a gente vai acabar sendo presa. Você não disse que tinha ingressos? Bem, vamos nessa...
- Que nada, deixa de ser medrosa... - Nessa hora, as duas escutaram o barulho da platéia lá de dentro. - Tá vendo, vai começar...
Ella fez uma careta e piscou, puxando a melhor amiga novamente. Logo elas estavam diante de dois seguranças, que vestiam casacos pretos e calças jeans, eram altos e largos, mas isso não pareceu intimidar Ella que foi logo falando:
- Eu queria falar com o Richard Hewitt...
- Quem é você?
- Sou filha dele...
- Ãh... Desculpe, senhorita... Mas é que não pode entrar ninguém sem o nome na lista...
- Então mande alguém chamar meu pai oras...
- É que não tem ninguém e...
- Tudo bem, tudo bem. Eu espero, mas você vai ser demitido por isso... - Ella disse convicta e os dois pareceram nervosos.
- E ela quem é? - Um deles perguntou parecendo querer ganhar tempo.
- Minha amiga... Tudo bem, eu vou pela frente, mas daqui a pouco eu volto viu... - Ella virou-se ainda segurando a mão de Elizabeth, deu uma rápida piscada de olho e seguiu sem exitar. A amiga deu uma olhada rápida nos seguranças à medida que foram se distanciando.
- Ella, você é maluca mesmo. - Teve tempo de cochichar antes de ver os seguranças se entreolhando.
- Ah, você fala como se não estivesse acostumada... mas não fica olhando... - Ella murmurou.
- Ei! Ei! Senhorita Hewitt!!!
Ella parou, deu aquele sorriso maroto que Elizabeth conhecia bem e virou-se:
- Siiiiim?
- Perdoe-nos, pode entrar... E se puder não comentar nada com seu pai...
As duas voltaram sem perder tempo, enquanto Ella mantinha o ar vitorioso: 
- Fiquem tranquilos... - Ela deu um tapinha no ombro de cada um deles. - Mas espero que lembrem de mim da próxima vez.
Um dos seguranças abriu a porta sorrindo embaraçado e as duas amigas entram nos bastidores da casa de show.
- Uau, Ella, se você não fosse mulher te dava um beijo agora. Nem to acreditando, acho que estou dormindo ainda. E agora para aonde vamos?
- Bom, vamos achar um lugar escondido pra assistir o show e depois a gente pode tentar ir até os camarins... - Ella diz isso com um brilho nos olhos de excitação.
Quando elas abriram a pesada porta de aço no fim do corredor, depararam-se com uma espécie de saguão de entrada. Nele, diversas garotas, quase uma dúzia delas, que aparentavam ter pouco mais de dezoito anos, embora fosse difícil definir com tanta maquiagem que usavam, conversam entre si. Todas elas usavam roupas espalhafatosas e coloridas, com echarpes, óculos, botas, tudo com um ar de rock´n roll psicodélico. Algumas bebiam uísque e cerveja e praticamente todas fumavam. Havia uma certa névoa da fumaça no ar. Alguns espelhos e mesas decoram  ambiente e ao fundo haviam duas portas. Alguns carregadores de equipamento entravam e saíam pelas portas.
- Acredito que estas garotas fazem parte do show. - Elizabeth falou bem baixo para Ella ouvir. - Vamos ter que passar por elas e entrar numa destas portas ou você acha melhor perguntar?
- Eu acho que são só groupies mesmo. Sabe aquelas meninas que ficam se atirando nos músicos e tal? Eu acho que se só andarmos ninguém vai nem notar...
- Eu quero muito um autógrafo do David Gilmour. - Se animou Elizabeth tentando ser discreta e não chamar atenção.
- Achei que já tava doidona... - Ella riu da amiga se ser nada discreta. - Com sorte a gente consegue
até mais... 
Elas começaram a cruzar a sala e ninguém parecia se aperceber delas. Finalmente chegaram às portas e quando estavam entrando em uma delas, escutaram a gritaria e barulheira atrás delas.
- Espero que estes gritos sejam de fãs enlouquecidas. - Elizabeth disse se virando para ver o que era.
Ao virarem-se, elas viram quatro cabeludos entrando de calças jeans, jaquetas e camisetas. Junto deles vinha um cara mais velho com alguns papéis e gritando com outros dois mais jovens e magrelos que carregavam várias coisas. As garotas os cercaram e algumas delas abraçaram alguns deles, além de beijinhos muito carinhosos.
- São eles... São eles!!! - Ella parecia em êxtase.
- Vai lá, amiga, você é muito mais fã deles do que eu, te espero aqui... Vai logo! - Disse Elizabeth ainda um pouco intimidada com tudo ali.
Ella saiu correndo. No caminho, ela pegou uma echarpe plumosa sobre uma das mesas, era vermelha, e a colocou no pescoço. Sem pudores, Ella aproximou-se dos rapazes com dificuldade, enquanto Elizabeth assistia lá da porta, Ella empurrou uma das meninas e finalmente esbarrou em David Gilmour. Tirando o cabelo comprido e liso do rosto, ele a olhou com um ar de "quem é você", mas rapidamente já estavam conversando.
Enquanto isso, Elizabeth sentiu um toque em seu ombro.
- A garota é maluca mesmo... - Pensou consigo mesma, enquanto virou-se para ver quem a cutucava.
Ela se deparou com uma outra garota, que tinha o rosto quase todo coberto por óculos escuros largos, com aros dourados e bem espalhafatosos. O cabelo dela tinha vários tons de loiro e é ondulado, bastante volumoso. A garota tinha muita presença, como um Robert Plant de saias e usava um casaco de peles marrom amarelado, calças de couro marrons boca de sino e uma bata verde clara, além de fumar um cigarro.
- Quem é você gatinha? - A garota pôs a mão que tocara Elizabeth na própria cintura, soprou a
fumaça e deu um sorriso maroto, como se estivesse posando para uma foto.
- Oi... Sou apenas uma fã, estou esperando minha amiga que foi até ali tentar pegar um autógrafo, mas acho que ela já conseguiu... Desculpa se estou em seu caminho...
- Que nada, gatinha. - A garota puxou a fumaça. - Não precisa se desculpar e você não tá no meu caminho. Mas você não quer um autógrafo? Eles já vão subir no palco...
- Eu quero muito do David, mas com esta legião de fãs que esta em volta deles,vai ser impossível...
- Que nada. Deixa de ser tímida. - A garota pegou Elizabeth pelo braço e começou a arrastá-la na direção dos caras do Pink Floyd. - Qual seu nominho?
- Me chamo Elizabeth, mas realmente sou tímida, é melhor eu não ir la não...
Mesmo deixando o corpo pesado e resistindo, Elizabeth já estava ao lado de todos quando terminara de responder. A garota lhe sorriu um sorriso meigo e levantou os óculos como se fosse um arco sobre o cabelo antes de falar: 
- Deixa de ser bobinha, Beth. David?!! David!!!
David Gilmour parou de conversar com Ella e se virou para a garota, abrindo um largo sorriso, como se ela fosse alguém muito especial para ele: 
- Mas se não é a glamurosa Lucy Diamonds....
- In the sky, meu caro. Lucy in the Sky with Diamonds, primeira e única. Mas não sou eu a brilhar dessa vez...
Ella olhou para a amiga com cara de "quem é a doida", mas Lucy continuou falando e colocou Elizabeth entre eles:
- Essa aqui é minha amiga Beth e ela queria muito te conhecer. - Lucy tragou o cigarro.
- Olá Beth, é um prazer. - Disse David, que beijou as costas da mão dela e deu aquele olhar levantado ao fazê-lo encarando-a nos olhos.

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Carmem: 4

O céu estava estrelado e a lua crescente, uma brisa fria e refrescante sacudiu os cabelos embaraçados de Carmem. Para ela foi bom respirar um ar sem cheiro de sangue.
Eles dobraram  o rumo ao lado do hospital e ali estava a pequena casa, tão simples quanto a dos demais habitantes que viviam na cidade. Não possuía mais do que quatro cômodos e o teto era do mesmo barro vermelho típico da região. As paredes certamente precisavam de pintura com seu branco cal agora encardido pela poeira.
Passando pela porta, já na sala, havia uma mesa de madeira rústica com quatro cadeiras, duas estavam ocupadas, uma pelo Doutor Felipe e a outra por outro homem. Ele era mais alto e robusto que Felipe, mas da mesma idade, cerca de 30 e poucos anos. Já estava um pouco calvo e tinha a pele levemente morena, com alguns traços mais grossos como os dos árabes, mas bem leves. No todo parecia um espanhol típico com os cabelos pretos e lisos e os olhos amendoados. Ambos devoravam com apetite a comida no prato de barro, à frente deles uma panela e uma jarra.
Ambos os viram chegar. Felipe seguiu comendo após um aceno com os olhos, enquanto o outro, que agora ela reconhecia como um dos enfermeiros que a ajudara no hospital, fez um aceno com a mão.
- Olá senhorita. Sou Blanco, lembra-se? Mais calma? Sente-se por favor. - Ele levantou e puxou a cadeira.
Carmem sorriu para eles:
- Sim, muito obrigada. Doutor Felipe, queria lhe agradecer por ter salvo o senhor Garcia. O senhor é um ótimo médico. Não se incomode comigo, por favor, sente-se. - Ela pegou a cadeira e sentou-se ao lado deles. Estava um pouco tímida, mas aos poucos a conversa a descontraiu.
- Não foi nada... - Felipe disse com a boca cheia e sem parecer dar muita importância.
O Doutor Hurtado sentou-se, por fim, na última cadeira, de fronte para ela. 
- Coma Carmem..
Enquanto Blanco tornava ao prato dele, Raul pegou um que ali estava e começou a se servir.
- Obrigada, doutor Hurtado. Sinceramente, estou mesmo faminta.
Enquanto o doutor Hurtado despejava a mistura de carne, feijão e molho de tomate sobre o prato, Carmem levava as primeiras garfadas da comida à boca. Sentia a leve picância típica dos pratos mexicanos, até pouco ardida para os hábitos alimentares dela. A comida estava saborosa, mesmo estando a carne um pouco dura. Antes mesmo de começar a saciar a fome, todo o prato de comida havia acabado.
Hurtado ainda comia, olhando-a de quando em quando em meio àquele silêncio dos famintos. Blanco bebia água da jarra, enquanto Felipe, de pé, colocava o prato sujo dentro de uma grande tina de madeira, já ocupada por um tanto de louça suja.
Carmem parou de comer, deu uma observada no lugar, que talvez por ter tantos homens que eram tão ocupados, não estava nada organizado. Carmem percebia os olhares do doutor Hurtado, porém apenas sorria. 
- Se os senhores quiserem, posso dar uma ajuda na casa..
- Você não se cansa nunca, Carmem? - Disse o doutor Hurtado rindo e sendo seguido por Blanco, enquanto Felipe simplesmente levantou e saiu dali, pela porta, deixando a casa.
Ali na sala, além da mesa, havia uma cômoda grande de madeira escura com quatro gavetas. Sobre ela haviam alguns porta-retratos e um pequeno vaso com flores já ressecadas. Havia também um banco longo e baixo sobre o qual poderiam sentar três pessoas, encostado á parede, bem como um pequeno quadro na parede oposta à porta da entrada, onde via-se um mar e um belo litoral, com uma cidade ao fundo.
- Coma apenas, pois quando terminar iremos acompanhá-la até sua casa... - Terminou de falar Raul entre as garfadas na comida no prato.
Carmem sorriu e balançou a cabeça: 
- Mas não posso ir para casa... Antes tenho que tomar todas as providências pra tirar o senhor Garcia do hospital, eu não poderia de qualquer forma deixá-lo lá sozinho e ir embora. Quanto à ajuda, ficaria contente em contribuir por aqui, a não ser que prefiram recusar uma jovem solidária - Carmem sorriu para Hurtado novamente.
- Serei obrigado a recusar, senhorita - disse o doutor Hurtado ainda rindo. - Mas Blanco e eu a ajudaremos a levar o senhor Garcia até sua casa, onde de certo ele estará melhor acomodado. Passaremos a lista de remédios que vocês devem comprar para ajudar na recuperação. Quem sabe outro dia você não torna e aí aceitaremos sua ajuda... - Raul terminou de comer o último pedaço de carne, que mastigou com elegância, enquanto Blanco pôs um tanto mais de comida no prato.
Carmem os olhava com admiração e se sentia cada vez mais aturdida e encantada por aquele novo mundo, aquele lugar, onde tão poucas pessoas faziam o máximo de si para ajudar tantas pessoas em estado lamentável. Tudo era tão distante de sua vida mesmo estando ali tão próximo.
 - Doutor Hurtado, eu estava pensando... - Carmem hesitou um pouco, mas resolveu falar. - Eu não tenho um conhecimento muito grande em saúde, medicina... Quer dizer sei de algo que já vi em alguns livros somente, mas tenho uma enorme vontade de ajudar as pessoas por aqui. Quem sabe, vocês não estão precisando de alguém a mais aqui no hospital... - Carmem concluiu num tom de voz baixo e suave, até mesmo trêmulo. Estava com medo da resposta que o simpático doutor pudesse lhe dar. Ou até mesmo da interrupção dos companheiros do doutor, que até o momento tinham se feito indiferentes da presença dela ali ao que lhe parecia.
O doutor Raul Hurtado terminou de mastigar e engolir, sob os olhares interessados não só dela, mas também de Blanco:
- Todos os braços aqui fazem diferença, senhorita. De certo, seria ótimo ter sua ajuda. Mesmo sem ser médica ou enfermeira, certamente teríamos muita utilidade para sua intensa vontade de ajudar. Lúcia poderia treiná-la, não acha Blanco?
- Claro! - Disse Blanco com um sorriso espontâneo. - Eu posso ajudá-la também. Não sou médico também, isso só o doutor aqui e o Felipe. Eu e Lúcia somos enfermeiros. Tem o Ramirez e o Esteban, aqui da vila, que treinamos para nos ajudar como enfermeiros, mas você vai aprender muito mais rápido que eles.
- Mas não quero problemas com sua família, senhorita Carmem. Seu irmão me pareceu um tanto... Ãh... Intempestivo... - Hurtado deixou o garfo sobre o prato vazio.
- Meu irmão... Ah meu irmão! Ele tem o hábito de achar que é por certas horas meu pai. Mesmo que fosse, não haveria de me impedir de ajudar tantas pessoas necessitadas. Minha mãe é quem me importa, doutor Hurtado. - Carmem perdeu o sorriso e o olhou seriamente. - E eu sei que ela não iria se opor ela mesma a auxiliar se soubesse de tudo que vi e vivi hoje aqui.  - Depois se virou para Blanco com um sorriso. - Se o senhor puder me ajudar a aprender isso tudo que não sei, eu ficaria muito grata mesmo, mas, antes de qualquer coisa, preciso tirar o senhor Garcia daqui. Falando nisso... - Ela se voltou para o médico novamente, mas agora com uma certa ironia ao final. - Se o senhor me permitir doutor, eu poderia ir até lá ver como ele está.
- Vá senhorita, tão logo Blanco termine de comer iremos ajudá-la a levar seu amigo para casa. - O doutor Hurtado disse fazendo um leve movimento de cabeça, enquanto estendeu a mão até a jarra e encheu um copo com água.
- Está bem então, se me dão licença, a comida estava ótima, obrigada pelo jantar.
Carmem entrou no hospital com o espírito mais leve, além das forças renovadas pelo alimento. Ainda que tudo ali continuasse desolado como antes, algo nela estava mais preparado para tudo ali, além do novo ânimo de que poderia ajudar a melhorar a vida de todos aqueles necessitados.
O saguão continuava tomado por algumas pessoas que dormiam, enquanto por trás do balcão apenas Lúcia a assistiu chegar. O rosto dela estava pesado pelo sono e pelo cansaço. Ela acompanhou o caminhar de Carmem, enquanto se dirigia para o corredor que se iniciava por trás dela:
- Espero que tenha estado tudo do seu agrado, senhorita Rubio. - Havia certo sarcasmo na voz dela. - E que não tenha se espantado com nosso pequeno circo dos horrores... - E o sarcasmo parecia aumentar a cada palavra.
Carmem não entendeu o intento de Lúcia. 
- Estará do meu agrado quando estas pessoas estiverem melhores, senhorita Lúcia. - Talvez a enfermeira a tratasse assim por Carmem ser de uma rica família, por ciúmes do doutor Hurtado, o simplesmente por estar exausta. No entanto Carmem continuou - E pra mim isso não é um circo de horrores e sim uma coisa desumana. Não costumo observar as pessoas como animais de um circo, afinal se assim o fosse, eu não estaria a madrugada toda tentando salvá-las. 
Carmem resolveu se calar, por que iria querer enfrentar Lúcia? Nem ela mesmo entendia porque a enfermeira a tratava daquela forma. Mesmo assim, Lúcia aprumou-se diante daquelas palavras, fulminando com os olhos:
- És uma jovem muito altruísta, mocinha. - O sarcasmo era suficiente para aquilo não soar como um elogio. 
No mesmo instante, porém, o doutor Felipe emergiu do corredor que levava até o quarto de Garcia Contreras.
- Algum problema, Lúcia?
- Não, Felipe. Estava apenas conversando com a senhorita Rúbio.
Felipe então lançou os olhos indiferentes para a jovem:
- Seu amigo está a esperá-la senhorita.
- Sim, doutor Felipe, estava indo até lá. E o doutor Hurtado já está no hospital? - Carmem falou aquilo somente para ver a reação de Lúcia, num tom irônico, sentindo-se cansada de todo aquele joguinho com a enfermeira.
- Achei que ele estava jantando com você.. - Felipe estranhou as palavras dela, enquanto Lúcia lançou um olhar felino para ela. 
A enfermeira virou-se para Felipe falando:
- É melhor fecharmos tudo e irmos descansar.
- Sim, já é hora. Vá logo ver seu amigo, senhorita Carmem Rúbio, pois temos de fechar o hospital.
- Como assim fechar o hospital? E se acontecer algo grave enquanto o hospital estiver fechado? Doutor Felipe, o doutor Hurtado pediu para que eu o esperasse. - Carmem novamente sorriu para Lúcia com um ar desafiador.
- Irão nos procurar em casa e reabriremos se algo ocorrer. - Disse Lúcia com a petulância de quem sabe o que diz.
- Precisamos descansar, senhorita Rúbio e não podemos deixar os pacientes à mercê de quem quiser entrar. Mas se vai esperar pelo doutor Hurtado, creio que eu posso me retirar e vocês cuidam de fechar tudo.
- Mas Felipe... - Disse Lúcia com o receio de quem ficará só, embora Felipe não tenha dado importância e sem nem mesmo olhar para elas, saiu dali.
Carmem ouviu a voz de Hurtado dizendo o nome dele e logo em seguida o médico e Blanco apareceram 
- Pronta Carmem? Seu amigo está pronto?
- Eu estava o aguardando, doutor Hurtado. Creio que o senhor e senhor Blanco vão comigo até lá? O doutor Felipe mandou Lúcia fechar o hospital.
- Felipe está um pouco cansado, mas realmente já é hora de fecharmos. Vamos logo ao encontro do seu amigo. Lúcia, você pode começar a fechar tudo...
- Sim senhor, doutor... - Lúcia disse passando por ele com um nítido tom de irritação na voz.
O doutor Hurtado não pareceu ter se apercebido e seguiu em direção ao corredor que levava ao quarto de Garcia Contreras, sendo seguido por Blanco, que deu uma olhada para trás vendo Lúcia passar, mas ainda assim seguiu. Carmem sorriu, balançou a cabeça e caminhou atrás de Blanco, lembrado-se agora, de que o encantador senhor Garcia estava lá, correndo sérios riscos de infecções ficando por ali. Eles seguiram pelo corredor e logo estavam novamente diante de. Garcia, ali prostrado entre toda aquela gente moribunda.
Blanco e Hurtado pegaram uma padiola e, com cuidado, passaram-no para ela, enquanto Carmem segurava a cabeça do desacordado amigo de Carlos. O pano branco amarronzado de sangue ressecado, afundou com o peso dele e tanto Blanco quanto Hurtado fizeram bastante força. 
- Nossa! Como é pesado! - Blanco disse enquanto eles iam saindo para o corredor.
- Vamos logo... - Disse Hurtado, fazendo careta de força.
A conversa incomodou alguns, mas ninguém reclamou enquanto eles logo saíam dali. Logo chegaram ao saguão do hospital e dali para fora, onde apenas a noite cobria suas cabeças. O caminho até a fazenda onde Carmem morava era longo, mas a casa da cidade ficava logo ali, a três prédios da Igreja.
Carmem pensou um pouco e achou melhor ir até a casa, pelo menos por aquela noite. No outro dia, pela manhã, pediria para o seu irmão ou Carlos irem até lá buscar o senhor Garcia.
- Doutor Hurtado, vamos levá-lo para uma casa aqui perto, está bem? Assim não precisamos carregá-lo até a fazenda, afinal de contas, isso seria um tanto complicado.
Eles puseram-se a atravessar as ruas empoeiradas e sinuosas da Cidade do México, que estavam desertas àquela hora, atravessando a praça da Igreja e finalmente, com os médicos já exauridos, chegaram ao portão de ferro da grande mansão. Dois homens montavam vigília ali, escorados no muro e apoiados em suas espingardas. Carmem logo reconheceu Esteban e Juan, dois dos funcionários de seu tio Fernandez Rúbio. Como a maioria deles, eram rudes, mal-cheirosos e sem educação, apenas capangas broncos que pela robustez serviam de seguranças.
- Boa noite, dona Carmem... - Disse Juan, enquanto Esteban apenas tirou o largo chapéu e fez um cumprimento movendo a cabeça. - Doutores...
- Podem nos ajudar aqui, senhores? - Hurtado não escondia que estava esgotado pelo peso.
- Claro! - Disse Juan pegando a padiola de Hurtado, enquanto Blanco a entregou a Esteban. - Mas... É que... Tão todos na festa na fazenda... Num tem ninguém aí...
- Sim, homem, eu sei - explicou Carmem - mas está muito tarde para levarmos ele até a fazenda e apenas nós não conseguiríamos fazer isso. Por isso, o senhor Garcia ficará a noite aqui e eu cuidarei dele. E amanhã pela manhã um de vocês vai até a fazenda chamar meu irmão e o senhor Carlos, amigo do senhor Garcia... Agora, ajudem-nos a levá-lo para dentro e deixemos de conversas. - Carmem foi um tanto rude pelo cansaço.
- Sim, senhorita.
Os dois disseram obedientemente entrando pelo portão com a padiola, sendo seguidos por Carmem, Hurtado e Blanco. Eles passaram pela calçada cercada da grama verde e bem cortada do jardim, que apesar das condições desfavoráveis do clima, era de certo a mais verde da Cidade do México. Passavam pelas estátuas bregas que sua tia tanto gostava, de deuses e deusas gregas, que buscavam dar um ar aristocrático ao jardim, mas sendo elas de gesso, apenas destoavam de tudo que havia ali. Haviam ainda algumas frondosas árvores, que durante o dia proporcionavam boa sombra.
Logo, Juan estava pegando o molho de chaves e abrindo a grande porta de madeira do casarão colonial. A casa havia sido uma das primeiras construções da cidade dominada pelos espanhóis, em estilo clássico, e de certo foi a mais suntuosa durante muito tempo. Estava na família de Carmem há pelo menos dez gerações e se hoje carecia um pouco de pintura e de algumas reformas, ainda exibia um esplendor invejável para a maior parte dos que punham os olhos nela.
A porta rangeu ao ser empurrada, enquanto eles entraram pisando o assoalho de madeira. O saguão da casa estava repleto de bustos, tapeçarias e tantas coisas mais, que causava certa confusão aos que não estavam acostumados àquele ambiente, ao contrário de Carmem. Isso piorava na escuridão da noite, onde apenas vários vultos eram visíveis.
Havia a grande escadaria que levava para o andar superior, onde ficavam todos os quartos, nada menos que dezesseis, enquanto o piso térreo, seguindo-se por uma das portas ali presentes, compreendia a cozinha, o pátio, os cômodos dos criados, entre outras coisas. 
- Para onde, senhorita? - Perguntou Juan ainda na escuridão.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Norberto: 1



Cidade do Porto, Portugal - 1512

- Eu financio tua viagem para África, mas quero metade do lucro sobre a venda de escravos!
"Não gosto muito de trabalhar com escravos", pensou Norberto coçando a cabeça. "Ainda mais devendo para alguém, mas se não tem outro jeito":
- Por quanto tempo? - Perguntou Norberto demonstrando interesse.
- Mas que raio de pergunta é esta? Se esta tentando seguir para as Índias levando essa pólvora e armas, pretendes trazer escravos, marfim, não é? E ouro até os Açores e de lá açúcar! Pois quero metade do lucro por
cabeça de negro...
- Tudo bem, amigo, terás metade do lucro sobre os negros sem problemas. Apenas me dê um tempo para arrumar as coisas por aqui se possível. A propósito você virá também ou ficará aqui esperando o retorno?
- Por certo que não, pois tenho meu próprios negócios a tocar. Serei apenas o mecenas de sua empreitada ao mar. Aqui está o contrato, assine ao final. Passe em meu banco amanhã e lhe entregarei o dinheiro...
Norberto leu o contrato atenciosamente procurando o que poderia prejudicá-lo no futuro. Nunca fora de muitas leituras, mas aprendera um vocabulário suficiente para lidar com os negócios. No pergaminho ele leu:
"Por meio deste, os assinantes concordam de vontade própria e por completo por dividir em duas partes iguais, todo e qualquer lucro proveniente da venda de escravos negros africanos pela primeira parte, visando o ressarcimento do investimento da segunda parte.

Assinatura da primeira parte     Testemunha

Assinatura da segunda parte     Testemunha".

Norberto colocou o pergaminho nas costas do imediato Rui e assinou um N estilizado. Depois mandou que seu subalterno assinasse como testemunha, o que obrigou-o a fazer um x no local. O mercador partiu deixando uma das vias do contrato com Norberto e levando a outra consigo.
- E então capitão, quando partiremos?
-Assim que eu arrumar minhas malas. Convoque os vermes do mar. Vou pegar o dinheiro amanhã. Me aguarde nas docas.
Norberto foi para o sobrado de sua família. Não teve descanso no restante do dia com tantas providências a tomar. Deixou tudo ajeitado com seu cunhado para cuidar do sobrado durante sua ausência, bem como já encaminhou provisões e materiais com o crédito de que dispunha.
No dia seguinte, antes que o sol raiasse estava diante do Banco Pereira e Figueira do Porto. Sabia que era arriscado ir só, mas sabia se cuidar. Recebeu a carta de crédito do banco, além de quinhentas coroas. Então, dirigiu-se para as docas, onde o bote o aguardava. Rui sorriu vendo que o chefe não demorara, escarrou e fez sinal para os marujos remarem enquanto soltava a corda.
O capitão pisou no navio com seu pé direito e sentiu a brisa do mar no rosto. Ah, o mar, seu verdadeiro lar. A tripulação o cumprimentou no caminho para sua cabine. Ele arrumou suas coisas, olhou as leituras astrais nos mapas, tudo estava pronto. Antes que chamasse, no entanto, Rui, entrou na cabine:
O imediato era um sujeito moreno, fruto da união de um marinheiro catalão com uma paixão africana. Era musculoso e alto, sempre usando duas argolas na orelha esquerda e um lenço na cabeça. 
- Senhor, os mantimentos estão checados, os marinheiros estão apostos, o convés está limpo. Tudo está pronto...
Norberto bateu no ombro de Rui e foi ao convés. Ele encheu o pulmão com o ar salgado e disse com convicção:
- Icem as velas, recolham a âncora! Estamos de partida, cães do mar! Vamos para o sul, rumo à fortuna!
A tripulação gritou em uníssono, saudando o mar que os aguardava e o capitão que os liderava. Todos começam a correr numa harmonia perfeita, içando a vela, levantando a âncora e guiando a caravela para as águas do Atlântico, rumo a Cabo Verde, primeira parada antes do continente africano. O vento jogou o navio contra as águas e logo eles já estavam navegando.
- Senhor, há dois homens supervisionando a carga de pólvora, tecidos, cachaça e vinho... Mais um na quilha de vigília, dois para as velas e um ao leme. Devo reportar-me duas vezes ao dia? Ficará em sua cabine? 
-Reporte uma vez ao dia. Estarei em minha cabine apenas. Prefiro vistoriar a tripulação pessoalmente. Arrume alguém para preparar o porão para homens e não para animais, os escravos deverão estar saudáveis ao nosso retorno.
Norberto voltou para a cabine e escreveu as primeiras linhas do diário de bordo e depois saiu para verificar a tripulação. Ele circulou pelo convés e pode ver a animação dos marinheiros, todos homens embrutecidos pela dura vida do mar, mas ao mesmo tempo homens sensíveis a qualquer mudança nesse grande reino de água. Eles puxavam cordas, jogavam para fora a água que invadia a embarcação, içavam as velas. Estavam todos empolgados, era natural no início das viagens, mas o capitão sabia que o tempo traria a saudade da terra firme, como trouxe do mar. Era bom que se mantivessem na rota e tivessem boas cargas com que lucrar,a fim de saciar o desejo por ouro que arrasta os homens ao mar.
Passaram três dias até chegarem ao porto da ilha Madeira, o pequeno arquipélago ao sudoeste de Portugal. Norberto via os negros que trabalhavam nos campos de cana, andando por todos os lados. Muitos trabalhavam
no porto ancorando os navios ou como carregadores. O capitão Norberto mandou ancorar o navio e preparar o bote para ir ao encontro de Alberto, seu contato e aliado nessas terras que o esperava no cais.
-Organize a tripulação, Rui. Certifique que a dispensa seja reabastecida e depois deixe os marinheiros se divertirem. Quero seis homens aqui todo o tempo! - Ele ordenou pegando uma garrafa de vinho de sua cabine e descendo para o primeiro bote.
- Que os ratos do navio devorem meu fígado! Quanto tempo Alberto! - Foi como cumprimentou o velho amigo antes de por a garrafa em cima de uma caixa para poder dar um forte aperto de mão e um tapa nas costas dele. - Vamos nos sentar em algum lugar para desfrutar deste vinho direto do Porto, pois que de certo ambos temos historias para contar.
- Mas que malditos sejam esses ventos que só carregam a pior escória de Portugal para cá! - Alberto retribuiu o abraço com entusiasmo e guiou Norbeto pelo pier em direção aos armazéns. - As coisas andam paradas por aqui, muitos seguem para África. Depois que o velhaco Bartolomeu achou finalmente o fim ao sul da África lá no Cabo das Tormentas onde morreu, tudo parecia que estava a melhorar. Mas ninguém quer saber das terras de Santa Cruz no oeste...

- Com certeza não deve haver de um nada além de árvores por aquelas terras inóspitas, se fosse meu navegador que me levasse a uma terra inútil, eu o deixaria amarrado no mastro central na companhia das gaivotas toda a viagem de volta - debochou Norberto. - O que importa agora é que beberemos agora e iremos atrás de mulheres depois meses no mar pode deixar um homem doido; com sorte podemos encontrar a tripulação e ter uma festa de verdade com muita bebida e muitas mulheres!
- Ora rapaz, pois digo que tenho aqui uma nova mucama que é um encanto. Vem de Angola e suas ancas são largas. Não sei que fogo há nessas negras, mas ele me consome. - Alberto riu, enquanto já brindavam com o vinho. - Mas tomemos essa garrafa e vamos até o bordel. Eles estão com novas raparigas lá.
-Tome cuidado com suas brincadeiras, amigo, pois já temos mulatinhos demais por aí... - Norberto falou aquilo bebendo e sem olhar para a cor da própria pele. Depois enxugou a boca na manga da blusa. - Mas que coisa! Pelo menos esteve junto com uma mulher enquanto estive no mar! Terminemos logo esse vinho e me leve até esse bordel, quero deixar uns bastardos aqui antes de partir para a África!
Os dois gargalharam enquanto desciam a viela estreita em direção ao bordel. A casa das meretrizesl era um pouco mais que um sobrado de parafitas. Era muito simples, com duas dúzias de mulheres, que se não eram as mais belas, ao menos sabiam como fazer um homem gritar de prazer. Os amigos adentraram e pediram por mais bebida para brindar com as messalinas que já vinha recebê-los. Além deles, Norberto viu alguns de seus marinheiros, um outro trabalhador local e um soturno homem, que conversava num canto reservadamente com Ataulfa, a cafetina.

-Olha Alberto, ainda tem gente  que pensa em trabalho aqui - debochou Norberto falando um tanto alto demais e deixando o vinho lhe subir a cabeça. - Ele deve de estar arrumando raparigas para uma festa particular, não é mesmo?
Sem demora, o capitão e o amigo riram. Norberto atirou algumas pacatas sobre a mesa e tomou uma das damas para si. Escolheu uma de seios tão fartos que poderia dormir sobre eles. A noite foi longa e exaustiva. Ele acordou sentindo a dor de cabeça, o gosto rançoso do vinho na boca e despido na cama, ao lado da messalina.

domingo, 13 de setembro de 2015

Carmem: 3

- Doutor, o senhor pode salvá-lo? Queres alguma ajuda? Tudo bem com o senhor Garcia, não é mesmo? Diga-me que vai salvá-lo, por favor...
Carmem fazia pergunta atrás de pergunta, sem dar tempo às devidas respostas. Estava tão aflita, angustiada e desesperada que escaparam algumas lágrimas de seus olhos. Só pensava na morte de Garcia, e em como ela viveria carregando nas costas a morte de alguém, pois julgava-se culpada pela situação. Se não tivesse conversado com o senhor Garcia e o convidado a sentar-se com ela... Achava que aquele homem estava lá por sua culpa. Um rapaz tão jovem, esperto e elegante, morrer dessa forma... Carmem jamais iria conseguir viver com tamanho peso.
Felipe continuou debruçado sobre o corpo de Garcia:
- Acho que deve tirá-la daqui Ra.. Hurtado. Ela parece nervosa. Mas fique tranquila, senhorita, seu amigo não corre risco de morte.
- Venha,  Carmem - disse o doutor Hurtado pegando-a pelos ombros. - Vamos cuidar desses pés e depois voltamos.
- Pés? Meus pés não importam mais. Eu apenas quero ver o senhor Garcia, preciso me desculpar com ele, dizer que eu não queria nada disso... ó Deus. - Carmem acabou derramando lágrimas enquanto fala. Exausta, faminta, ensanguentada e num estado psicológico horrível, ela apenas queria permanecer perto dele, pois toda aquela culpa não cessaria enquanto soubesse que ele estava lá, sozinho.
Hurtado foi conduzindo-a para longe dali enquanto falava: 
- Não se preocupe, senhorita. Se alguém pode salvá-lo é Felipe e ele precisa de calma e silêncio para salvá-lo. Prometo que tão logo ele termine a trarei para junto de seu amado.
Carmem sorriu em meio as suas lágrimas: 
- Doutor Hurtado, o senhor Garcia não é meu amado. São questões deveras mais profundas que o próprio amor. É culpa minha que ele tenha sido baleado.E ele é um rapaz tão jovem, elegante. Acharia muito injusto morrer assim... E por culpa minha... Não consigo me conformar com nada disso.. - Carmem pausava sua fala, pois sentia fortes dores nos pés. 
O médico interrompeu o movimento dela e a faz sentar-se num longo banco, como os de uma igreja, encostado à parede, próximo à entrada do hospital. Havia um pequeno espaço ali para uma pessoa entre as várias que jaziam deitadas. Muitos eram parentes dos doentes que dormiam ali aguardando por notícias, enquanto outros eram eles próprios pacientes que não tinham onde ser abrigados, mas pacientes de menos prioridade, tomados por febres altas ou pequenos ferimentos que não ofereciam riscos.
De frente para ela, o doutor Hurtado tomou o pé esquerdo na mão e com um movimento delicado e cuidadoso passou a cuidar dos ferimentos. Os pés estavam em carne viva e agora que Carmem parara para lhes dar atenção, doíam bastante. Ele limpou tudo com um pano molhado em um líquido incolor que a cada toque ia deixando seus pés mais dormentes e fazendo a dor diminuir. Depois com uma pinça retirou pequenas pedras que haviam se incrustado na sola e na lateral dos pés. Por fim, ele envolveu ambos os pés em bandagens, que lhe pareceram trapos de algum velho lençol desfiado, dando três voltas em cada. O doutor Hurtado olhou-a sorrindo quando terminou:
- Evite andar, senhorita, e em alguns dias estará novinha em folha. Bem sei que isso será quase impossível visto seu comportamento até aqui. - Ele permitiu-se uma curta risada. - Mas peço que tente evitar. Logo Felipe virá nos chamar, mas gostaria de aproveitar esse momento para perguntar-lhe uma coisa, se não se importares - e antes de qualquer resposta dela - pois vi que és de uma das famílias da aristocracia local...
-Claro, doutor Hurtado, realmente minha família é da aristocracia. - Carmem ficou sem jeito e abaixou a cabeça com um leve sorriso. Enquanto o doutor cuidava de seus pés, tinha o reparado muito, e embora tivesse trabalhado intensamente naquele hospital, ainda se preocupava com ela. Carmem havia feito uma certa amizade com o doutor, apesar de terem se conhecido em tal situação. Acabou tomando grande admiração por aquele médico, que parecia tão dedicado e confiante. - E o que desejas saber sobre eles? - Carmem perguntou aquilo delicadamente,dando um belo sorriso.
Ele baixou os olhos diante de seu sorriso, a feição dele torna-se pesarosa, parecia oprimido por algum grave problema. Aquele médico aparentava cerca de cinquenta anos, ou talvez, fosse o cansaço e o estado atual que o faziam parecer tão velho. Ainda assim era um homem bem articulado, que nitidamente recebera boa educado, embora tivesse as mãos hoje tomadas por calos. 
- Bem. Eu vim para essa cidade há quase vinte anos já. Fundei esse hospital com meus alunos, deixamos a Espanha para trás confiando no que nos havia dito o presidente Porfírio Diaz... Bem... Desde lá, muita coisa mudou, o presidente e tudo mais, mas o hospital continua abandonado e não temos conseguido sequer atender as necessidades mais básicas deste povo... - Ele passeou os olhos pelos muitos amontoados que haviam por ali. - Não há remédios, pessoas suficientes... Precisamos desesperadamente de dinheiro! - Ele ergueu os olhos e fixou-os nos dela. - E o motivo pelo qual estou lhe dizendo tudo isso, é que, talvez, você possa interceder junto ao seu tio, conseguir que ele nos ajude...
Carmem olhou o doutor Hurtado com ternura e ao mesmo tempo com tristeza.
- Doutor Hurtado, a minha vida toda eu quis mudar alguma coisa, mesmo tratando-se do meu próprio destino. Em minha família, assim como em tantas outras, e porque não dizer em todas, nós mulheres não somos percebidas. Somos criadas para sermos boas donas de casa e arrumarmos um bom pretendente. Não preciso lhe dizer sobre o desapontamento de meu tio por eu estar aqui esta noite. Não somos educadas para ajudar as pessoas doutor. Gostaria sim, e muito, de ajudá-lo a melhorar esse hospital, mas não posso mentir-lhe, e tão pouco o doutor seria tolo de não perceber, mas como uma moça de família tradicional, dificilmente eu poderia chamar atenção de meu tio com nada que não seja um noivo. Talvez se tivesse nascido homem assim pudesse fazer.
- Suas jovens mãos serão úteis por demais, senhorita. Mas sabe, Carmem, se não conseguirmos dobrar os poderosos a olhar por esse povo, de nada adiantarão nossos esforços. Pensei que talvez... Que você pudesse ter alguma influência junto a seu tio, Don Fernandez.
- Eu posso tentar, com enorme prazer. Não calaria diante de tal problema para todo o povo. Contudo não pense, doutor, que eu ou qualquer outra mulher que não cale tenha muita influência em questões políticas ou financeiras. E o senhor pode estar certo de que isto muito me desagrada.
- Eu bem sei...
Eles ouviram os passos vindos do corredor. Olhando para trás, viram o doutor Felipe vindo e limpando as mãos num pano que estava cor de sangue ressecado. 
- Bem, está terminado. Ele vai ficar bem.
Carmem mal disfarçava a imensa vontade de correr e abraçar ao médico.
- Isto é mesmo verdade, doutor? Ele ficará bem? Ó Deus... Doutor Hurtado, obrigada por cuidar tão bem de meus pés, mas podemos continuar nossa conversa depois de ver o senhor Garcia? Eu poderia ir até lá?
- Pode ir - diz Felipe que amparou uma senhora que dormia encostada na parede. - Mas evite movê-lo ou emocioná-lo... Venha dona Maria...
- Vá Carmem. - Concordou Hurtado.
- Mais uma vez agradeço doutor.
Carmem deu um belo sorriso e entrou o corredor correndo, na medida da velocidade que seus pés aguentavam tocar a chão, até a porta do quarto de Garcia. Ali entre as muitas pessoas que tinham partes do corpo faltantes estava ele. Estava deitado ao lado de outro homem mais castigado pela vida e que perdera um braço, os dois dividindo um leito pela falta de espaço. O cheiro de sangue continuava forte, mas nada mais era tão preocupante com o alívio de ver o movimento lento mas constante do peito de Garcia Contreras. Ele estava de bruços e havia um grande lençol amarrado como uma bandagem ao redor do tronco dele.
- Senhor Garcia? - Perguntou delicadamente Carmem, não tendo certeza se ele estava acordado ou dormindo, bem ou mal. Pra ela, o importante é que aquele jovem rapaz, que havia "dado sua vida" por ela, estivesse bem.
Ele permaneceu imóvel ante as palavras vacilantes que deixaram os lábios dela, parecia ainda desacordado.
Carmem ficou de joelhos, ao lado da cama onde ele se encontrava. Queria falar com ele, porém não queria acordá-lo. Ainda pensava que talvez aquele homem nem gostaria de vê la novamente. Ficou ali por algum tempo. Quinze minutos ou uma hora talvez. Não sabia ao certo, apenas sabia que iria esperar ele acordar, pelo menos dizer um muito obrigada.
Uma ansiedade a corroía de mãos dadas com o remorso. Os dedos vacilantes dela ousaram tocá-lo como um afago de desculpas. Encontraram os grossos dedos da mão delicada dele. Ela teve a impressão de que eles tremeram levemente e recuou ante o susto, mas ele não se mexeu e os dedos dela retornaram à mão dele, que fechou-se sobre a de Carmem com um aperto que pedia ajuda, que pedia um consolo. A voz veio do rosto de olhos ainda fechados: 
- Qu.. Quem?..
- Senhor Garcia... Sou eu, Carmem... Como se sente? Consegue falar comigo?
- Ca... Carm... Carmem... - a voz era fraca como a de um moribundo. - On.. Onde?.. Estou no céu?.. - Ele disse enfim abrindo os olhos.
-Acalma-se, senhor. Garcia, o senhor está no hospital, alguns médicos e eu lutamos pela sua vida.
Garcia forçava o pescoço para olhar para cima, já que estava de bruços, a cabeça de lado tentava se erguer para vê-la melhor: 
- Fi... Fico... Fe... Feliz... Em vê-la...
- Senhor Garcia, por favor, não tente fazer esforço. - Carmem disse abaixando-se junto ao rosto dele. - Fique calmo, eu estarei aqui para tudo o que precisar. - Carmem apertou a mão de Garcia. - Apenas diga-me que me perdoa, por tê-lo metido em tudo isso... 
- Pe... Per.. Perdoá-la? Ma.. Mas... Pe... Pe... Pelo... que? - Ele diz olhando nos olhos dela e falando com dificuldade.
- Senhor Garcia, é por culpa minha que está aqui. O senhor foi um cavalheiro, porém foi baleado. Ficarei aqui, cuidando do senhor. - Carmem lhe deu um sorriso e apertou sua mão. - Diga, senhor Garica, pode me perdoar?
A feição dele mudou, como se toda a dor fosse aliviada por um instante, os lábios dele se contorcem tentando sorrir, enquanto um gemido escapa dele. Mas os olhos dele brilham. 
- O... Ora... Ma... Mas eu só te... Tenho a a... Agradecer... E... Se... Va... Vai... Fi... Ficar... Aqui... Eu n... Não ia... Que... Querer... Es... Estar em... Ou... Outro lugar...
Carmem deixou correr uma lágrima, pois pra ela aquilo tudo era mágico. Sentia como se tivesse salvado a vida de Garcia, embora ele também tivesse feito por salvar a sua própria. Sentia por ele um sentimento diferente, que ela até então não sabia explicar. Depois das palavras dele, Carmem lhe deu um beijo na face, que tocou o gosto salgado do suor e doce do sangue seco:
-Tudo vai ficar bem, senhor Garcia. Fico feliz por estar melhor. Eu estava tão angustiada com tudo que aconteceu.
Garcia Contreras relaxou com o toque dos lábios dela. O rosto dele pareceu tomado de um alívio, enquanto os olhos se fecharam. 
- E... Eu só po... Posso.. Ag... Gradecer...
- Senhor Garcia, tente descansar. Durma um pouco se conseguir. Vou tentar levá-lo a um quarto, achar um outro hospital, ainda não sei, só sei que preciso lhe tirar daqui, não parece um bom lugar para se recuperar - Carmem contemplava os muitos corpos mutilados que Garcia ainda não podia perceber, mesmo dividindo uma maca com um deles. - Também preciso avisar a todos que o senhor está bem. Peço que tenha um pouco de paciência e tente dormir, enquanto providencio tudo o mais rápido possível. 
Carmem apertou na mão dele e sorriu novamente. Levantou e saiu lentamente do quarto, continuando a olhar cada vez mais de longe para Garcia. Ela cruzou a porta vendo-o cerrar os olhos e diria até que sorrindo. Ao virar-se para o corredor, viu o doutor Hurtado vindo em sua direção, nas mãos ele trazia um prato e um copo.
- Muito obrigada, doutor Hurtado, obrigada de todo o coração! E agora, o hospital ainda tem muita gente pra ser atendida? Posso ajudá-lo em alguma coisa?
- Vai me ajudar muito, senhorita, se comer essa comida aqui e beber um pouco de água e não ficar doente... - Ele disse sorrindo e estendendo o prato e o copo para ela. - Como está o seu amigo?
(Carmem sorriu pra ele, pegou o copo e o prato antes de responder: 
- Ele está bem, graças ao senhor doutor Hurtado. Afinal, quem ensinou o doutor Felipe a salvar vidas, não é? Eu até posso lhe dar essa "ajuda" - Ela disse apontando para a bandeja - Mas apenas se o senhor me acompanhar...
- Fico grato por sua cordialidade e graciosidade, Carmem. Terei o maior prazer em comer com você, mas achei que iria querer ficar de olho no seu amigo.
- Assim que terminarmos darei um jeito de tirá-lo daqui. É muito perigoso,entre tantos doentes, uma infinidade de mazelas. Entendo que não são condições dignas para ninguém doutor, mas o senhor Garcia eu posso tirar daqui e tentar dar-lhe um melhor repouso. Ainda não tenho uma boa ideia do que fazer, mas sei que preciso tirá-lo daqui. Enquanto ele descansa para que eu possa movê-lo, vamos descansar um pouco também, não é doutor? - Carmem deu um belo sorriso para o médico. - Me diga, onde podemos ir?
- Venha. - Hurtado disse enquanto seguiam pelo corredor de volta ao saguão, onde a enfermeira atendente os olhava chegar por trás do balcão. - Minha casa é contígua ao hospital. Felipe e Blanco, meus alunos e colegas estão lá jantando, podemos nos unir a eles. Será um lugar melhor do que aqui no hospital.
- Lúcia, qualquer coisa nos chame. Estamos em casa.
- Sim. Sim, doutor Hurtado. - A enfermeira disse com a voz cansada e rançosa.