- Por que esse ar tão sombrio?
- O que sentes, exatamente, ao ponto de lhe gerar tal sensação? Seriam estes meus olhos cansados ou alguma coisa em meu próprio ser que talvez eu ainda não tenha percebido? Mas, por favor, perdão, não gostaria de ter passado algum ar confuso...
- De modo algum.. não posso negar que vejo o cansaço nos teus olhos, mas também vejo um ar sagaz. - Disse o monsenhor com o ar sábio que tinham todas as palavras proferidas por seus lábios velhos e ressecados. - Uma jovem como você deve ter melhores companhias do que um velho como eu...
- A sabedoria é uma velha e boa amiga do tempo, certamente. - Márcia disse enquanto sorria levemente. - Não creio que as tenha, o que eu poderia julgar como sendo uma companhia mais adequada? Consigo observar fatos que alguns jovens simplesmente não compreendem, estão afogados em divertimentos tolos que a nossa atual sociedade tem a oferecer e deixam-lhe escapar os detalhes sutis que coexistem com o resto, mas acredito que talvez seja uma boa ideia nos aconchegarmos naquele café, o senhor aprecia a bebida? Eu sei, deve soar estranho ser convidado por uma mulher, espero que não veja isso como indelicadeza da minha parte. E não se preocupe, estou em boa companhia.
- De modo algum, minha jovem. - Retrucou o monsenhor aceitando o convite e tomando a direção do café. - Mas creio que irei tomar um chá, pois com a idade, já não é qualquer coisa que me desce bem ao estômago. E seu pai sempre foi um bom amigo, quase que um irmão, eu diria... Mesmo que tenha abandonado a Igreja, nunca deixou de ter Deus no coração. - O monsenhor sorriu como se lembrasse de boas coisas do passado. - E vejo em você esse mesmo excesso de inteligência que via nele. Mas diga-me, afinal, o que a trás até Praga?
- Ah o senhor sabe... - Márcia falou com a cabeça baixa e uma leve expressão triste. - Depois que ele faleceu, as coisas tornaram-se mais difíceis, principalmente para a minha mãe, o afastamento da igreja, bom eu concluo como a causa serem as pesquisas ousadas no trabalho dele, afinal a medicina sempre exigiu muito dos profissionais. Mas mesmo assim ele tinha Deus no coração, como o senhor mencionou. Ele estava fazendo umas pesquisas inovadoras, apesar de não entrar em detalhes com a minha pessoa. O excesso de trabalho enfraqueceu a sua saúde, bom, mas isso já fazem três anos. Vim até aqui por estas razões familiares, ele tinha uma propriedade aqui, creio que senhor deve recordar, um pouco afastada da cidade, eu evitei vir antes por causa das lembranças. - O sorriso dela se tronou melancólico. - Mas com a doença de minha mãe, o resto dos assuntos familiares ficou sob minha responsabilidade, acho que ela, simplesmente adoeceu de tristeza, ela não vai conseguir superar a ausência dele, nem mesmo com a ajuda do tempo. O laboratório de meu pai ficava na propriedade, vou avaliar o que faremos com a casa e verei com a universidade em que ele dava aula se posso doar os livros de medicina dele para a biblioteca.
Quando ela terminou de explicar os motivos de sua vinda, já estavam sentados no café. O monsenhor fizera sinal ao garçom, que veio prontamente.
- Traga um chá para mim e um café para a senhorita...
- Sim, monsenhor. - Falou o jovem se retirando.
- Entendo. Lembro-me da propriedade. Está um pouco abandonada, mas tenho certeza que encontrará bom valor por ela. Posso pedir a um de meus secretários que a acompanhe até lá. Eu mesmo iria, mas tenho muitas obrigações clericais, afora o peso da idade. Com fé em Deus sua mãe há de se recuperar. - O velho religioso tentou dar um sorriso animador. - A universidade ficará satisfeita com a doação, afinal de contas seu pai foi um dos médicos mais... Inovadores... De nosso país. Irei sugerir, inclusive, que façam-lhe uma justa homenagem aproveitando sua visita...
- Aqui está. - Disse o rapaz entregando o café e o chá e deixando se perder um instante na beleza austera de Márcia, até que o pigarrear do monsenhor o lembrou de dar-lhes licença. Ela, por sua vez, demorou-se olhando para o interior da xícara de café.
- Realmente acredito que conseguiremos um bom valor para a propriedade. Bom, creio que o problema são os rumores folclóricos referentes ao local, sabe como as pessoas são supersticiosas. Certa vez, meu pai teve uma governanta trabalhando em sua propriedade que podia jurar que ele estava "brincando com os mortos" e estes rumores espalharam-se juntamente com outros. Eu até mesmo estava lendo ontem no jornal, falava sobre possíveis assombrações na casa, que falta de notícias para postarem em um jornal. Às vezes chego a pensar que existam pessoas que desejam prejudicar meu pai mesmo após ele ter morrido. Um homem tão bondoso e brilhante, que mesmo assim atraía pessoas invejosas. - Ela parou e deu um gole de café. - É uma vergonha, considerando a ciência que temos hoje, que as pessoas ainda acreditem em teorias pseudo-medievais. Meu pai era realmente muito religioso, mas aliava-se à ciência. Espero que o comprador não seja uma pessoa que acredita em tudo, ou demoraremos para vender a propriedade. Mas eu acho graça desta história toda...
- Não se pode dar ouvidos a essas crendices populares, minha cara. - O monsenhor lembrou com um sorriso de total descrédito. - O que o povo fala... - Ele deu um pequenino gole no chá. - Não se escreve... Ao contrário do que pensam os jornalistas desse pasquins xinfrins... - O velho permitiu-se uma risadinha. - Certamente, que alguém de posses o suficientes para comprá-la não será influenciado por esses pueris contos campesinos, engraçadinhos nos melhores casos, débeis nos piores... - Ele deu outro gole. - O legado do seu pai nunca seria maculado por tais crendices...
- Ainda existem pessoas de razão neste mundo, nem tudo está perdido. - Márcia recuperou levemente o sorriso e mexeu o café lentamente com uma pequenina colher. - Pretendo em breve ir até a propriedade, mas e o senhor? Como estão os seus afazeres na igreja? Sempre que posso, procuro ir à minha cidade, é algo que faz realmente bem a mim, nada como um pouco de paz nesses dias mundanos - Ela parou de mexer o café e depositou a colher no pires. - Levo a minha mãe quando vou e tem sido o melhor remédio que posso oferecer a ela, nem sempre posso dedicar meu tempo a cuidá-la, o senhor sabe, a vida de uma professora em uma escola feminina tem seus contratempos, mas gosto de exercer a profissão... - Deu, então, mais um pequeno gole de café.
- O trabalho enobrece a alma e louva ao Senhor, minha filha. Tenho certeza que várias famílias podem dormir em paz tendo as filhas bem educadas por uma professora tão digna. Quanto a mim, bem... O que pode dizer um velho bispo como eu? Cuido de meu rebanho, oro a Deus e tento manter Praga longe dessa política vil que se espalha por aí... Política desses trabalhadores libertinos, comunistas e ateus... - O monsenhor fez o sinal da cruz e uma cara de desprezo. - Mas como eu disse antes, não poderei acompanhá-la, mas não terei problemas em destacar um secretário para levá-la...
- Eu realmente compartilho do seu desgosto por esse tipo de cidadão amante de balbúrdia, acho que Deus na vida das pessoas já resolve a maioria dos problemas. O fato é que poucos possuem essa visão da realidade... Acho que já esta ficando tarde, creio que nós devemos nos recolher, mas aceito a sua ajuda referente ao secretário e agradeço pela sua preocupação. Não se preocupe, irei passar na sua igreja para ver o culto antes de ir, mas vou ficar aqui em Praga tempo o suficiente. Além de resolver estas questões burocráticas da propriedade de meu pai, quero ver a sua igreja e andar um pouco por esta maravilhosa cidade, muitas vezes me pego com saudades daqui...
- Não há cidade como esta no mundo, minha filha. - O Monsenhor declarou com satisfação, usando os braços velhos pra se levantar.
Eles pagaram a conta e Márcia o acompanhou de volta à Igreja de São Vito.
- Venha ver a missa pela manhã e logo depois pedirei que um de meus secretário vá contigo. Creio que Amadeu será a companhia ideal... Um homem sério e devoto... - O velho sorriu timidamente. - Vá com Deus, minha filha...
- Até amanhã pela manhã e muito obrigada pela ajuda e pela incomparável companhia...verei-o durante a missa...
Boa Noite.
Márcia virou-se, saiu a passos calmos e por um breve instante admirou o céu nublado. Ela atravessa a rua pouco movimentada àquela hora da noite e ao chegar ao lado oposto, admirou a Igreja de São Vito. Observou que o bispo já havia adentrado na igreja, virou-se novamente em direção ao hotel onde estava hospedada a poucas quadras dali.
Havia pouca gente pela rua naquele princípio de noite. Os mendigos foram ficando menos numerosos conforme Márcia se afastava da Igreja. Ao chegar ao hotel, no entanto, um homem que saía do edifício parou na frente dela impedindo-a de entrar.
- Com licença... - Ele disse tirando o chapéu e sorrindo. Era jovem, mas usava uma barba que dava ar mais velho e respeitável. - Eu estava procurando pela senhorita...
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