quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Carmem: 6


Carmem, que estava com tudo encaminhado para o café de Garcia, preferiu subir e entregar a refeição a Garcia. Desceria mais tarde, quando Esteban a chamasse. “ Que será que o delegado queria?” Ela pensou, mas resolveu descobrir depois. Entrou no quarto, cuja porta ficara aberta, e viu Garcia que esbanjou um sorriso quando a viu com a bandeja do maravilhoso café da manhã. Simples, porém apetitoso.
Fazendo um pequeno esforço para se erguer um pouco, como se fosse sentar, Garcia Contreras apenas se contorceu em caretas, deixando Carmem preocupada, mas logo abriu um sorriso: 
- Sinto-me um sultão que recebe um banquete da mais bela das odaliscas...
Ela sorriu e logo em seguida lhe serviu, lhe dando as torradas, o chá:
- Quanto açúcar você gostaria?
- Duas colheres me bastam... Mas diga-me, minha prestativa dama, como findou o casamento? - Ele disse entre um gole de chá e uma torrada. - Espero não ter impedido a festa de continuar com minhas chagas.
-Ah, senhor Garcia, não posso lhe dar essa informação. Pra lhe ser franca, acabei passando todo o tempo no hospital. Ajudei o doutor Hurtado com alguns doentes, o hospital estava muito cheio, entende... Acabei fazendo o que podia por quem estava lá. Acabei esquecendo totalmente do casamento...
- Parece que não há infortúnio que a detenha... - Ele deu um sorriso simpático, entre uma torrada e o chá, enquanto já começavam a ouvir os passos vindo em direção ao quarto, quando por fim, o pigarreio de Esteban clamou por atenção do outro lado da porta.
- Com licença, senhorita Carmem...
-Sim Esteban, creio que sei do que se trata, já estou descendo. Senhor Garcia, se puder esperar, em um momento estarei aqui, o delegado está lá embaixo na porta. Creio que seja bom eu ir atendê-lo.
- Pois diga a ele que tome o mínimo de sua atenção, pois não sei mais ficar sem minha enfermeira... - Garcia deu seu mais belo sorriso desde que acordara do tiro.
Carmem estremeceu. Não sabia se sorria ou se saía correndo. Estava definitivamente sentindo algo novo e era por ele. Por aquele sorriso, por aqueles olhos...
 -Ah, senhor Garcia, eu... Bem... Bem... Hãm... Eu não vou me, me, me... Demorar. - Ela sorriu sem jeito e saiu rapidamente.
Enquanto ela saiu experimentando aquela sensação que bailava entre o estremecer das pernas e saltitar serelepe, já podia ver Esteban descendo vagaroso a escada. Quando chegou até esta, vendo a porta da sala aberta e o delegado logo ali, quase dentro e Esteban que falava:
- A senhorita Carmem já vem...
- Sim. Estou vendo ela. Você pode ir. - Disse o delegado em tom desdenhoso, enquanto com o polegar e o indicador alisava o bigode. Fez uma reverência. - Bons dias, senhorita Rubio.
-Bom dia, senhor delegado. A que devo a honra de sua visita? Afinal como deves saber, minha família se encontra toda na fazenda por enquanto.
- Sim, eu soube. - Ele disse com um sorriso nervoso. - Mas pensei... Errr... A senhorita aqui, sozinha... Esses bandoleiros por aí à solta e vim... Vim oferecer minha proteção... Levá-la até a fazenda. Parece-me que a proteção de um homem viria bem, não? - O delegado disse agora com um sorriso como dos canastrões dos filmes sem cor que vez ou outra eram exibidos na praça da cidade. - Seria um enorme prazer de minha parte...
Mas Carmem o interrompeu: 
- Olha delegado, é mesmo muita bondade a sua vir oferecer sua... Sua... Proteção. Mas bem, tenho os melhores capangas de meu falecido pai aqui. E em breve meu irmão chegará. Não há motivos para preocupações. De qualquer forma, agradeço. - Ela sorriu rápido. Queria sair dali e subir as escadas, para ver Garcia e sua voz tão encantadora. - Carmem pare de pensar nisso, ele é seu paciente! - Ela repetia inutilmente em sua mente. - Esteban, por favor, nem se afaste... - Ela chamou rapidamente em um tom alto, antes que o rapaz sumisse por completo. - Por favor, acho que pode acompanhar o nosso amigável delegado, que sempre é tão gentil e caridoso. - Ela deu um belo sorriso de despedida para o homem da lei, tendo absoluta certeza de que ele sairia dali logo para que ela pudesse ver o seu tão amado... "Amado, Carmem? Você não tem amado algum!". Enfim, para que pudesse ver Garcia, que no andar superior a aguardava.
Esteban veio andando, pronto a acompanhar o delegado, que no entanto se deteve por um instante, ainda olhando-a com aqueles olhos interessados. 
- Vejo que está realmente bem protegida, senhorita Carmem. Espero, então, quem sabe, poder ter o prazer de uma conversa e um café com a senhorita, uma outra hora, quando tudo estiver mais calmo...
Carmem, um tanto intrigada com aquela situação apenas sorriu e acenou com a cabeça depressa:
- Qualquer outra hora, delegado, obrigada pela preocupação. 
Então, ela subiu rapidamente as escadas, sem olhar o velho e chato delegado novamente. Passou o mais rápido que podia pelo corredor. Queria chegar logo àquele quarto, não encontrava uma explicação lógica... Apenas precisava ver o tão terno e gentil senhor Garcia, com aquele belo sorriso e também um corpo extremamente atraente, ela descobrira a pouco. Se sentia às vezes ridícula de pensar aquelas coisas. Para ela, tudo deveria ser apenas preocupação. Nem o conhecia direito, mas havia se interessado por Garcia mais do que esperava. Adentrou o quarto sorrindo, como se dissesse para Garcia em segredo que tinha consigo algo muito importante. De fato, conseguira. Afastara aquele velho intrometido dali o mais rápido que pode.
Chegando ao quarto, deparou-se com Garcia a olhá-la entrar. Estava lá, com os olhos na porta a esperá-la voltar. O sorriso brotou e se expandiu no rosto dele como se ela fosse um sol a livrá-lo da escuridão. Ao lado dele estava a bandeja vazia. 
- Vejo que o bom delegado não me privou mais do que deveria de meu remédio...
Carmem sabia perfeitamente do que Garcia falava, porém resolveu se fazer de desentendida.
- Remédio, senhor Garcia? Está a sentir dor? Precisa que eu vá buscar algo?
- Refiro-me à sua presença, minha cara Carmem, sem a qual a dor me aflinge muito mais do que por conta desse tiro. Mas diga-me... O que desejava o delegado?
Carmem corou levemente. 
- Ah, nada demais. Apenas se oferecer para guardar a casa, pois acabou sabendo que eu estava aqui sozinha,..
- Muito gentil ele. Parece que ninguém resiste ao seu charme, minha cara... - Ele riu bastante, mas logo parou por uma pontada de dor.
-Senhor Garcia, tudo bem? - Carmem preocupou-se e se aproximou muito, chegando perto do rosto dele.
O gemido se interrompeu e a mão dele seguiu até o ombro dela, enquanto os olhares se encontraram. Estavam a poucos dedos de distância um do outro e Carmem sentiu o calor da respiração de Garcia Contreras. Os lábios deles se esticaram num sorriso e parecia nunca ter havido dor naquele rosto.
- Acho que não posso me exceder... - Ele disse antes de beijá-la.
Carmem não conseguiu sequer pensar. Garcia estava muito perto e ela não sabia o que dizer ou como sair da situação ou se deixava se levar pelo momento. Carmem se perdeu naqueles olhos, naquele sorriso, mas não fazia a menor ideia do que realmente se daria. Estava em transe, praticamente hipnotizada por aquilo tudo.
O toque dos lábios foi como um mergulho refrescante num rio. Veio o sabor adorável do toque dos lábios, que chegavam alimentados pela volúpia da paixão. Os lábios se fizeram ávidos e desejosos, sedentos do encontro. Assim como águas geladas, no entanto, faziam irradiar por todo o corpo os calafrios que despertam e revigoram.
Os corações dispararam nos peitos como se ali não mais coubessem e o ar parecia escorregar furtivamente das narinas, deixando-os arfantes. Era simplesmente mágico. Fez o tempo parecer parar.
- Arrã... Parece que estou interrompendo algo... - Veio subitamente uma voz da porta.
Em seu íntimo, Carmem sentiu que aquilo não podia ser verdade. Ela estava ali, beijando Garcia e aquela típica voz a interrompeu, aquela voz conhecida que não deveria ter ouvido naquele instante. Quantas perguntas ele poderia ter feito a Garcia, quanto tempo não a perturbaria e a chamaria de desonrada por conta de um beijo? Não, ele não sabia que aquilo foi muito mais que um beijo, que era mágico, maravilhoso, que Garcia era o homem que vinha no cavalo nos sonhos de criança de Carmem. "Mas na verdade quem o salvou fui eu...". Ela pensou achando aquilo engraçado, mas percebendo que precisava desgrudar os lábios de Garcia,
Ela se separou dele sorrindo, afinal não haveria mais o que fazer mesmo.
- Álvaro, você adora aparecer nos meus melhores momentos, não? - Perguntou Carmem com tom debochado, afinal sabia que teria de enfrentar longa briga com o irmão.
- Parece que você não tem consciência do seus atos, irmãzinha! - Álvaro disse aquilo nitidamente irritado e num tom bastante áspero. - E você, Garcia, achava que estava convalescente e está aí a se aproveitar dela! Não fosse seu estado, ensinaria-te uma lição!
Carlos levou a mão até o ombro de Álvaro:
- Acalme-se homem, não há nada de mal...
- Posso lhe garantir que minhas intenções para com sua irmã são as melhores Álvaro. Eu a amo.
Carmem corou ligeiramente e olhou para Garcia: 
- O q-que di-di-disse se-senhor Ga-Ga-Garcia?
- É isso mesmo, minha salvadora. Essa experiência quase mortal serviu para abrir meus olhos para a verdade. E a verdade é que eu a amo.
- Pois abusar da inocência de uma jovem dama não..
- Ora Álvaro, cale-se por favor. Não sabe respeitar um convalescente e dois apaixonados... - Interrompeu Carlos com bom humor, tomando a frente de Álvaro que parecia agora mais aturdido do que bravo.
O sorriso no rosto de Carlos fazia Carmem se sentir ainda mais confusa. Seu irmão não parecia tão irritado. Ele havia ficado muito mais na vez em que ela era dama do casamento dele e havia se atrasado simplesmente porque estava lendo. Seu irmão lhe lembrava muito seu pai. De repente lembrou de como a mãe sempre insistia que um dia ela precisaria arrumar um bom partido, um namorado. E pensou que com certeza sua mãe, se estivesse no lugar de Alvaro se sentiria extremamente feliz. Mas acima disso, Garcia disse que a amava. Duas vezes. Devia haver algo errado por ali. Um dos moços mais belos que ela já havia conhecido lhe dera um beijo doce, e depois disse para o seu irmão que a amava. Mas ela havia salvo sua vida, isso não seria apenas gratidão? 
Pensava em tantas coisas ao mesmo tempo que teve impressão que sua cabeça iria explodir. Será que ela conseguia falar? Iria tentar, afinal Álvaro já tinha visto a cena que pra ele devia ter sido extremamente desagradável, porém para ela... 
- Obrigada, Carlos. Álvaro, você não tem nada a ver com isso está bem? E eu não sou uma jovem inocente. E muito menos o senhor Garcia abusou de mim. - Ela encarou Garcia finalmente, pôde encontrar aquilo que lhe daria forças para enfrentar qualquer perigo deste mundo, o sorriso dele. Continuou falando, mas olhando ainda para ele. - Eu amo Garcia, e não é você Álvaro que vai me impedir de algo que eu queira. - Só então virou se para seu irmão mais velho. - E que eu saiba, nossa mãe vai adorar receber uma notícia como essa, não é mesmo? 
Carmem sorriu olhando para Carlos. Talvez se ele não estivesse ali junto de seu irmão, Álvaro não exitaria em lhe dar umas boas palmadas, como se estivesse batendo em uma criança de cinco anos.
- Ora sua inso... - Começou Álvaro, sendo contido por Carlos, que ainda sorrindo, enquanto o segurava falou:
- Pois eu fico deveras satisfeito por vocês dois, meus caros. Será ótimo tê-lo na família Garcia...
- Você não imagina como eu estou feliz, Carlos... Meu amigo... - Garcia disse ainda perdido num sorriso largo, enquanto olhava para Carmem. - Pois a prima de sua mulher roubou-me o coração, não posso negar.
- Vocês estão loucos! - Bradou Álvaro. - Você mal conhece esse sujeito!!!
- Ofende-me, senhor Álvaro, pois repito que amo sua irmã e não me tome por um mal sujeito. Meu debilitado coração talvez só bata por causa dela e penso ter sido esse amor o que me deu forças para sobreviver... Entendo seu alarde ante a cena que presenciou...
- Você estava a beijá-la!!!
- Ora Álvaro, contenha-se. Não somos mais meninos e sua irmã não é uma criança. É sim uma bela moça, ciente de seus atos...
Álvaro olhava tudo, parou de resistir e Carlos o deixou, enquanto Garcia Contreras estendeu o braço na direção de Carmem.
- O que me diz, minha amada Carmem, aceitas meu amor? Permitirás que eu te cuide pelo resto da vida como cuidas de mim?
Carmem não podia conter um enorme sorriso no rosto e um brilho gigantesco no olhar. Ela passou a realmente considerar a hipótese de que estaria sonhando. E bem, se não estivesse, queria lembrar de agradecer a Carlos pelo resto de sua vida. 
- Garcia, como eu poderia lhe negar a coisa que eu mais desejo no mundo? Mas antes de dizer qualquer coisa, preciso que minha mãe aceite isso também. Afinal ela é minha mãe... - Ela olhou para Álvaro como se quisesse dizer que ele não era a sua mãe. - E gostaria de saber se meu irmão vai se opor a isso. Afinal, quero saber quem quer a minha felicidade de verdade. 
Continuou olhando para o irmão com o olhar mais determinado que conseguia, aquele que desde que ela se conhecia por gente fazia pra conseguir algo do irmão. Com o seu pai não costumava dar certo, mas Álvaro sedia e não lhe negava nada sempre que ela fazia sua chantagem emocional. Depois voltou-se para o amado. - Mas o que importa de verdade Garcia é que sinto que não quero me afastar de você nunca.
Garcia sorria, Carlos também, apenas Álvaro não parecia animado e resmungava:
- Ora... Isso... Vocês... - Por fim, ele virou-se e deixou o quarto, parecendo tentar escapar daquela situação que tanto o constrangia.
- Acalmem-se... Irei conversar com Álvaro. Certamente ninguém se oporá a união de dois apaixonados.
- Carlos, meu amigo. Agradeço a você por tudo... E aproveitando, desculpe o trabalho...
- Ora, meu velho, agradeça apenas a Carmem, que não separou-se um segundo de você... Além de arrancar a bala de dentro de você...
- Ela tem todo meu amor.. - Garcia disse enquanto a mão dele encontrou a dela num carinho delicado.
- Álvaro é temperamental. Carmem o sabe. Mas entenderá. E tenho certeza que sua mãe e seu tio, meu sogro, adorarão a notícia... Aliás, falando neles, devemos tornar para a fazenda, trouxemos uma carroça para levá-lo, caro amigo... A festa nos aguarda e agora há ainda mais motivos para celebrarmos. - Carlos passou o braço pelo ombro de Carmem e deu um tapinha no braço estendido de Garcia.
Carmem sentiu-se mais aliviada, afinal Álvaro tirara a tensão ao sair. 
- Realmente, eu ia perguntar a você, Carlos, como acabou o casamento. Me perdoem, mas eu não poderia ficar lá, não é? - Ela sorriu para Garcia indicando que a "culpa" era toda dele. - De qualquer forma, vamos logo para a fazenda, afinal de contas perdemos comemorações demais. Não que eu goste muito de festas, mas digamos que eu tenha um ótimo motivo pra me animar para qualquer ocasião.
Falando isso, ela levantou-se da cama e informou que procuraria alguma de suas roupas que estivesse em bom estado para chegar a festa. Quando Carlos ia saindo, Carmem o chamou:
- Carlos, por favor, você não poderia... Sabe... Bem... Colocar uma roupa do Álvaro em Garcia? Afinal ele está meio fraco ainda, mas creio que não é necessário chegar com a roupa nesse estado... 
- Claro, Carmem. Vá vestir-se. Eu, Álvaro, Esteban e Juan cuidaremos de vesti-lo e pô-lo na carroça. Só peço que não demore, pois o calor lá fora está intenso.
- Obrigada Carlos. 
Carmem saiu apressadamente procurando qualquer vestido que fosse. Enfim, encontrou um vestido verde claro, florido nas bordas das alças e que ia um pouco abaixo do joelho. Prendeu os cabelos em um coque e lavou o rosto novamente. Em pouquíssimo tempo estava pronta. Quando deixou o banheiro, viu seu irmão, Carlos e os capatazes descendo Garcia numa padiola improvisada feita com um lençol. Logo estavam todos lá fora, buscando acomodar Garcia da melhor maneira.
Juan e Esteban ficaram cuidando da casa, enquanto os demais partiram no ritmo molejado da carroça, cujas rodas gemiam, enquanto era puxadas pelos dois cavalos. Ela era descoberta, expondo-os ao sol.
Álvaro guiava, enquanto Carlos ia sentado ao lado dele. O irmão da moça não havia falado mais nada desde que deixara o quarto, enquanto Carlos fazia comentários sobre o casamento e a festa todo o tempo para amenizar o clima. Carmem ia na parte de trás sentada, com Garcia deitado sobre seu colo. O rosto dele, feliz como o de uma criança diante de um mar de chocolate, fitava-a todo o tempo adornado por um sorriso singelo e sonhador, embora ele ainda estivesse pálido. Mesmo assim, o terno poido que ele vestia já melhorara bastante a imagem dele, escondendo os curativos e o sangue.
- Nossa Carlos, que bom que tudo deu certo, não é? Espero que ainda peguem aqueles homens horríveis.
Carmem ia conversando animada com Carlos e já brincava que ele seria padrinho do casamento dela. Enquanto conversava com Carlos, de vez em quando olhava para Garcia e sorria para ele, enquanto passava as delicadas mãos nos cabelos dele.
- Eles serão pegos, Carmem. Ninguém mexe com seu tio, se bem se lembra, afinal Don Fernandez Rubio é dos fazendeiros mais influentes de todo o México. Precisa ver como a fazenda está segura... Há guardas e soldados por todos os lados, além dos capatazes de seu tio. Queriam até mesmo mandar alguns para nos acompanhar, mas disse que Juan já estava de bom tamanho... Seu tio está uma fera com tudo. Imagine ter o casamento da filha invadido e convidados feridos... É um ultraje que ele não parece estar digerindo bem. Ainda bem que há a festa...
Carlos seguiu falando da lisonje por ter a honra de apadrinhar um casamento tão promissor, além de relembrar algumas histórias da antiga amizade entre ele e Garcia. Apenas Álvaro seguia calado, apenas soltando algumas reclamações esporadicamente ao longo da estrada até a fazenda.
A cidade logo foi ficando para trás, enquanto Carmem, fazendo uso de uma sombrinha, evitava o sol excessivo sobre seu recém-futuro marido. A carroça seguia o embalo do andar dos cavalos, apenas sacolejando quando uma pedra maior se apresentava na estrada.
- De qualquer forma, esses criminosos hão de pagar... Dizem que estão ligados a essas milícias que agem por todo sul, os tais ligados ao tal Zapata...
- Estamos chegando! - Interrompeu Álvaro, quando enfim a porteira da fazenda, que ainda distava um tanto da sede, irrompeu após um leve morro. Já haviam ali, além dos dois costumeiros capangas, quatro guardas da polícia.
-É, Carlos, vejo que não exagerou nem um pouco mesmo. Em todo caso, a segurança reforçada não é assim tão ruim. - Então, Carmem cochichou para apenas Carlos ouvir. - Pense bem, pelo menos assim Álvaro não poderá me deixar viúva antes mesmo de me casar... -  E ela e Carlos ficaram a rir e fazer os comentários mais maldosos que conseguiam na tentativa de fazer Álvaro se soltar um pouco mais.
Os guardas fizeram sinal para que parassem, mas logo reconheceram Álvaro, que ao contrário dos demais, gargalhantes, estava bastante sisudo.
- Senhor Álvaro... Don Fernandez já havia perguntado se haviam voltado..
- Demoramo-nos um pouco além do esperado, soldado.
- E está vivo o seu amigo, senhor Carlos?
- Está aqui e bem soldado, mas creio que sendo esperados devamos seguir. - Disse Carlos enquanto os capatazes abriam a porteira.
- Não fosse o dolorido, caro amigo. - Falou Garcia Contreras para Carlos, ainda olhando para Carmem. -  E eu diria estar no céu.
-Claro, Garcia, e Álvaro seria São Pedro? - Carmem falou num tom irônico que fez os três soltarem grandes gargalhadas. Ela até pode perceber um leve sorriso nos lábios de Alvaro, mas claro, nada que ele não pudesse disfarçar. - Nossa, estou faminta, parece que faz anos que não como.
- Verá como será belo o banquete do almoço, Carmem.. - Carlos falava enquanto ela escutava o próprio estômago roncar, assim como Garcia, deitado tão próximo a ele.
Desceram pela estrada de terra, avistando os bois que pastavam por trás das cercas. A grande sede da fazenda foi assomando diante de vocês e logo já escutavam a balburdia das festividades. Viam muita gente circulando, principalmente os empregados a cuidar dos preparativos para o almoço.
Havia uma grande mesa do lado de fora da casa. Seria capaz de receber cem pessoas, você imaginou ao vê-la, as criadas colocavam pratos e talheres sobre ela.
O tio de Carmem, Don Fernandez, olhava a tudo da sacada do quarto dele no segundo andar junto à esposa Amanda. A mãe de Álvaro e Carmem, a senhora Mercedez, ajudava a por a mesa, assim como a irmã deles, Valência, ajeitando os arranjos de flores e distribuindo a prataria. Magnólia, esposa de Álvaro, e Constanza, agora já esposa de Carlos, já avistando-os vinham andando em direção à carroça, assim como o pequeno irmão caçula Pablo, juntamente com outro meninos e meninas, que corriam serelepes em busca da novidade que se aproximava. Carlos acenava e gritava:
 - Ele está bem. Aliás muito bem... - Falou ainda gargalhando um pouco.
A mãe de Carmem, ao perceber a tão esperada chegada da filha, também se encaminhou para lá. Ela percebia que Álvaro não estava com boa cara. Enquanto Carmem sorria para a mãe, percorria os olhos pelo lugar. Estava tudo realmente ótimo, apesar da melhor de todas as coisas estar deitada ao colo dela. Era isso o que fazia Carmem pensar que não havia mais nada de errado com o mundo. Carlos sempre estava fazendo uma piada ou outra, mas sabia que no fundo ele tinha gostado da notícia, era um bom rapaz o marido de sua prima. Estava tudo muito perfeito até Carmem avistar um certo convidado, que com certeza ela preferia que tivesse ficado na cidade cuidando de seus afazeres. Afinal aquele velho não devia ter sido convidado. 
- Por que o titio não pode ter companhias melhores? - Ela pensou contrariada.
Pablo e seus pequenos companheiros foram os primeiros a chegar até a carroça, que no entanto só interrompeu seu movimento quando chegaram Constanza e Magnólia: 
- Que bom que já voltaram, temi que se atrasassem para o almoço... - Disse Constanza já recebendo o sorridente Carlos que saltava da carroça.
- Carmem. Carmem. Você está bem? - Perguntou eufórico e esbaforido Pablito. - É verdade que você arrancou a bala de dentro dele?
A mãe da moça vinha se aproximando segurando o longo vestido pelas laterais, com o ar preocupado de sempre, embora seus olhos estivessem fixos em outra pessoa. Garcia fez um leve esforço para se levantar, enquanto Álvaro, entregando as rédeas a um criado, descia da carroça junto a Magnólia, dizendo: 
- Você não vai acreditar...
- Nunca me atrasaria para o almoço do nosso casamento, meu amor... Respondeu Carlos. - Como vê, o senhor Contreras estava melhor do que pensávamos...
- Carmem gostava brincar de enfermeira... - Disse Constanza abrindo um largo sorriso.
- Querida prima, sinto lhe dizer que antes fosse uma brincadeira! Não sabes das coisas horríveis que as pessoas passam em hospitais... Poucos médicos, poucos lugares, mas enfim, pelo menos um paciente eu sei que está bem a salvo,  não é Garcia? - Falou e sorriu diretamente para Garcia. Constanza logo notou que havia algo mais que um homem que tinha sido salvo por ela por ali. 
- Sua prima é um anjo que salvou-me a vida, Constanza...
- É o que parece, senhor Contreras... Sente-se bem?
- Ainda não posso saltitar por aí, mas já estou bem melhor, obrigado. Uma cama é tudo que preciso... e da companhia de minha enfermeira, é claro... - Garcia disse acariciando as costas de sua mão com a dele.
- Caaaarmem!!! - Gritou Pablo zangado por ser ignorado, enquanto os outros meninos falavam todos ao mesmo tempo. A mãe que enfim chegara, apartou os meninos dali. 
- Minha menina, como está? Vejo que seu amigo está melhor... Sou a mãe de Carmem, senhor Contreras...
- Então já sei de onde ela herdou tamanha beleza, minha senhora.
- Aguarde aqui, Garcia, vou buscar ajuda para levá-lo para dentro. Venha querida, venha Álvaro. - Disse Carlos tirando-os dali.
Carmem percebeu um sorriso nos lábios de sua mãe e pensou:
- Claro, ela sempre quis isso não é... - E então falou. - Mamãe, eu preciso lhe contar uma coisa e preciso saber se... Bem... Se a senhora me dá sua benção...
- E o que seria, minha filha? - Disse Dona Mercedez ainda sorridente e com um brilho no olhar, mas antes que Carmem falasse, Garcia interrompeu-a tocando-lhe a mão.
- Peço que me permita o prazer deste pedido, meu anjo...
Carmem sorriu para a mãe e apertou forte na mão de Garcia, virando-se para ele: 
- Está certo, querido, tudo bem... - Ela percebeu que a mãe sorriu ainda mais ouvindo as palavras da filha e vendo aquele pequeno gesto de mãos que para ela era um conforto. Carmem adorava estar junto de Garcia. Ele lhe inspirava uma confiança, que apenas seu pai lhe inspirara. Mas o fato enfim, era que Garcia estava ali, a seu lado, prestes a falar com a sua mãe. Por fim, a moça ajudou Garcia a se sentar, enquanto abraçava o torso dele, já que ainda fraco, ele tinha dificuldades para manter-se firme. A senhora Mercedez parecia ansiosa.
- Minha senhora, eu sei que nos conhecemos em meio a uma grande confusão e não teve tempo de conhecer minha família ou meus afazeres. No entanto, desde que cheguei a este lugar, talvez por acaso, talvez pela vontade de Deus, não consegui deixar de encantar-me pela beleza de Carmem. Os últimos acontecimentos me fizeram ver todo o amor que brotou em meu peito... - Garcia fez uma pequena pausa recuperando o ar, enquanto Carmem e sua mãe trocaram olhares animados e confidentes. - E eu não sei quanto a seu esposo...
- Meu marido está morto, senhor Garcia.
- Perdoe-me... Sinto muito... Então não há realmente ninguém mais apropriado do que a senhora, para que eu realize meu pedido...
- Pois diga-o, homem!
- A senhora daria-me a honra de conceder a mão de sua filha para que se case comigo?
Carmem resolveu falar algo também, tinha ficado impressionada com Garica, ele não a pediria em namoro ou noivado, nada disso, ele estava disposto a se casar. Casar com alguém que acabara de conhecer, parecia loucura! Mas se de fato uma loucura tudo isso fosse, seria a melhor loucura de sua vida, ela tinha certeza. 
- Olha mamãe, talvez a senhora ache cedo, não sei, mas posso lhe garantir que Garcia é um bom homem e, mamãe, eu realmente quero muito ficar ao lado dele... O que a senhora acha? Quero dizer, bem, a senhora nos daria sua benção?
Dona Mercedez parecia um tanto surpresa, ainda que não conseguisse esconder a satisfação: 
- Ao que me parece, senhor Contreras, vocês já estão de acordo. E, já deve ter percebido que não é esta velha e cansada mãe que concegue impedir essa garota de fazer alguma coisa quando ela põe isso na cabeça... - Ela começou a sorrir largamente e os olhos encheram de água. - Minha menina... Minha doce Carmem... Está pronta para virar uma mulher... Não imaginei que esse dia fosse ficar tão feliz depois do que aconteceu ontem... Queria tanto que seu pai estivesse aqui. Ele ficaria tão orgulhoso de você, querida... - A mãe abraçou a filha e também Garcia. - É claro que vocês tem minha permissão.

sábado, 7 de novembro de 2015

Márcia: 1

Praga - 1901

- Por que esse ar tão sombrio?
- O que sentes, exatamente, ao ponto de lhe gerar tal sensação? Seriam estes meus olhos cansados ou alguma coisa em meu próprio ser que talvez eu ainda não tenha percebido? Mas, por favor, perdão, não gostaria de ter passado algum ar confuso...
- De modo algum.. não posso negar que vejo o cansaço nos teus olhos, mas também vejo um ar sagaz. - Disse o monsenhor com o ar sábio que tinham todas as palavras proferidas por seus lábios velhos e ressecados. - Uma jovem como você deve ter melhores companhias do que um velho como eu...
- A sabedoria é uma velha e boa amiga do tempo, certamente. - Márcia disse enquanto sorria levemente. - Não creio que as tenha, o que eu poderia julgar como sendo uma companhia mais adequada? Consigo observar fatos que alguns jovens simplesmente não compreendem, estão afogados em divertimentos tolos que a nossa atual sociedade tem a oferecer e deixam-lhe escapar os detalhes sutis que coexistem com o resto, mas acredito que talvez seja uma boa ideia nos aconchegarmos naquele café, o senhor aprecia a bebida? Eu sei, deve soar estranho ser convidado por uma mulher, espero que não veja isso como indelicadeza da minha parte. E não se preocupe, estou em boa companhia.
- De modo algum, minha jovem. - Retrucou o monsenhor aceitando o convite e tomando a direção do café. - Mas creio que irei tomar um chá, pois com a idade, já não é qualquer coisa que me desce bem ao estômago. E seu pai sempre foi um bom amigo, quase que um irmão, eu diria... Mesmo que tenha abandonado a Igreja, nunca deixou de ter Deus no coração. - O monsenhor sorriu como se lembrasse de boas coisas do passado. - E vejo em você esse mesmo excesso de inteligência que via nele. Mas diga-me, afinal, o que a trás até Praga?
- Ah o senhor sabe... - Márcia falou com a cabeça baixa e uma leve expressão triste. - Depois que ele faleceu, as coisas tornaram-se mais difíceis, principalmente para a minha mãe, o afastamento da igreja, bom eu concluo como a causa serem as pesquisas ousadas no trabalho dele, afinal a medicina sempre exigiu muito dos profissionais. Mas mesmo assim ele tinha Deus no coração, como o senhor mencionou. Ele estava fazendo umas pesquisas inovadoras, apesar de não entrar em detalhes com a minha pessoa. O excesso de trabalho enfraqueceu a sua saúde, bom, mas isso já fazem três anos. Vim até aqui por estas razões familiares, ele tinha uma propriedade aqui, creio que  senhor deve recordar, um pouco afastada da cidade, eu evitei vir antes por causa das lembranças. - O sorriso dela se tronou melancólico. - Mas com a doença de minha mãe, o resto dos assuntos familiares ficou sob minha responsabilidade, acho que ela, simplesmente adoeceu de tristeza, ela não vai conseguir superar a ausência dele, nem mesmo com a ajuda do tempo. O laboratório de meu pai ficava na propriedade, vou avaliar o que faremos com a casa e verei com a universidade em que ele dava aula se posso doar os livros de medicina dele para a biblioteca.
Quando ela terminou de explicar os motivos de sua vinda, já estavam sentados no café. O monsenhor fizera sinal ao garçom, que veio prontamente.
- Traga um chá para mim e um café para a senhorita...
- Sim, monsenhor. - Falou o jovem se retirando.
- Entendo. Lembro-me da propriedade. Está um pouco abandonada, mas tenho certeza que encontrará bom valor por ela. Posso pedir a um de meus secretários que a acompanhe até lá. Eu mesmo iria, mas tenho muitas obrigações clericais, afora o peso da idade. Com fé em Deus sua mãe há de se recuperar. - O velho religioso tentou dar um sorriso animador. - A universidade ficará satisfeita com a doação, afinal de contas seu pai foi um dos médicos mais... Inovadores... De nosso país. Irei sugerir, inclusive, que façam-lhe uma justa homenagem aproveitando sua visita...
- Aqui está. - Disse o rapaz entregando o café e o chá e deixando se perder um instante na beleza austera de Márcia, até que o pigarrear do monsenhor o lembrou de dar-lhes licença. Ela, por sua vez, demorou-se olhando para o interior da xícara de café.
- Realmente acredito que conseguiremos um bom valor para a propriedade. Bom, creio que o problema são os rumores folclóricos referentes ao local, sabe como as pessoas são supersticiosas. Certa vez, meu pai teve uma governanta trabalhando em sua propriedade que podia jurar que ele estava "brincando com os mortos" e estes rumores espalharam-se juntamente com outros. Eu até mesmo estava lendo ontem no jornal, falava sobre possíveis assombrações na casa, que falta de notícias para postarem em um jornal. Às vezes chego a pensar que existam pessoas que desejam prejudicar meu pai mesmo após ele ter morrido. Um homem tão bondoso e brilhante, que mesmo assim atraía pessoas invejosas. - Ela parou e deu um gole de café. - É uma vergonha, considerando a ciência que temos hoje, que as pessoas ainda acreditem em teorias pseudo-medievais. Meu pai era realmente muito religioso, mas aliava-se à ciência. Espero que o comprador não seja uma pessoa que acredita em tudo, ou demoraremos para vender a propriedade. Mas eu acho graça desta história toda... 
- Não se pode dar ouvidos a essas crendices populares, minha cara. - O monsenhor lembrou com um sorriso de total descrédito. - O que o povo fala... - Ele deu um pequenino gole no chá. - Não se escreve... Ao contrário do que pensam os jornalistas desse pasquins xinfrins... - O velho permitiu-se uma risadinha. - Certamente, que alguém de posses o suficientes para comprá-la não será influenciado por esses pueris contos campesinos, engraçadinhos nos melhores casos, débeis nos piores... - Ele deu outro gole. - O legado do seu pai nunca seria maculado por tais crendices...
- Ainda existem pessoas de razão neste mundo, nem tudo está perdido. - Márcia recuperou levemente o sorriso e mexeu o café lentamente com uma pequenina colher. - Pretendo em breve ir até a propriedade, mas e o senhor? Como estão os seus afazeres na igreja? Sempre que posso, procuro ir à minha cidade, é algo que faz realmente bem a mim, nada como um pouco de paz nesses dias mundanos  - Ela parou de mexer o café e depositou a colher no pires. - Levo a minha mãe quando vou e tem sido o melhor remédio que posso oferecer a ela, nem sempre posso dedicar meu tempo a cuidá-la, o senhor sabe, a vida de uma professora em uma escola feminina tem seus contratempos, mas gosto de exercer a profissão... - Deu, então, mais um pequeno gole de café.
- O trabalho enobrece a alma e louva ao Senhor, minha filha. Tenho certeza que várias famílias podem dormir em paz tendo as filhas bem educadas por uma professora tão digna. Quanto a mim, bem... O que pode dizer um velho bispo como eu? Cuido de meu rebanho, oro a Deus e tento manter Praga longe dessa política vil que se espalha por aí... Política desses trabalhadores libertinos, comunistas e ateus... - O monsenhor fez o sinal da cruz e uma cara de desprezo. - Mas como eu disse antes, não poderei acompanhá-la, mas não terei problemas em destacar um secretário para levá-la...
- Eu realmente compartilho do seu desgosto por esse tipo de cidadão amante de balbúrdia, acho que Deus na vida das pessoas já resolve a maioria dos problemas. O fato é que poucos possuem essa visão da realidade... Acho que já esta ficando tarde, creio que nós devemos nos recolher, mas aceito a sua ajuda referente ao secretário e agradeço pela sua preocupação. Não se preocupe, irei passar na sua igreja para ver o culto antes de ir, mas vou ficar aqui em Praga tempo o suficiente. Além de resolver estas questões burocráticas da propriedade de meu pai, quero ver a sua igreja e andar um pouco por esta maravilhosa cidade, muitas vezes me pego com saudades daqui...
- Não há cidade como esta no mundo, minha filha. - O Monsenhor declarou com satisfação, usando os braços velhos pra se levantar.
Eles pagaram a conta e Márcia o acompanhou de volta à Igreja de São Vito.
- Venha ver a missa pela manhã e logo depois pedirei que um de meus secretário vá contigo. Creio que Amadeu será a companhia ideal... Um homem sério e devoto... - O velho sorriu timidamente. - Vá com Deus, minha filha...
- Até amanhã pela manhã e muito obrigada pela ajuda e pela incomparável companhia...verei-o durante a missa...
Boa Noite.
Márcia virou-se, saiu a passos calmos e por um breve instante admirou o céu nublado. Ela atravessa a rua pouco movimentada àquela hora da noite e ao chegar ao lado oposto, admirou a Igreja de São Vito. Observou que o bispo já havia adentrado na igreja, virou-se novamente em direção ao hotel onde estava hospedada a poucas quadras dali.
Havia pouca gente pela rua naquele princípio de noite. Os mendigos foram ficando menos numerosos conforme Márcia se afastava da Igreja. Ao chegar ao hotel, no entanto, um homem que saía do edifício parou na frente dela impedindo-a de entrar.
- Com licença... - Ele disse tirando o chapéu e sorrindo. Era jovem, mas usava uma barba que dava ar mais velho e respeitável. - Eu estava procurando pela senhorita...

domingo, 1 de novembro de 2015

Carmem: 5

- Deixe-o aí no chão, com cuidado, até eu acender algumas velas, por favor. - Carmem acendeu lampiões e velas. Depois, ordenou aos capangas que levassem Garcia para um dos quartos de hóspedes no andar superior. - Doutor Hurtado, por gentileza, queira me acompanhar até lá em cima para prescrever uma receita.
Todos subiram sob a luz do candelabro de prata que Carmem tomara nas mãos, com as três velas acesas. Logo chegaram a um dos quartos, onde os homens colocaram Garcia Contreras sobre uma cama, sem arrancar dele um murmúrio sequer. Blanco e Hurtado a acompanharam, e enquanto o médico anotava o nome dos remédios em um papel, Blanco olhava ao redor.
Juan deu um passo à frente com a chapéu na mão e cara de cão sem dono: 
- Mais alguma coisa, senhorita?
- Sim, Juan, por favor, assim que clarear o dia, vá até a fazenda, e chame meu irmão Álvaro e sua esposa, e também Carlos, o noivo. Mande todos para cá. É tudo Juan, obrigada. - Carmem observou os dois saírem e depois se dirigiu ao doutor Hurtado. - Doutor, poderia me fazer o favor de explicar tudo?
- Aqui estão os remédios que ele irá precisar, Carmem. Irão ajudar com a dor. Os ferimentos devem ser lavados uma vez por dia e procure fazer compressas e dar a ele muita água. Comida apenas se ele recobrar totalmente a lucidez. Não o deixe se movimentar e evite muita confusão ao redor dele. É preciso que tome conta dele todo o tempo. - O médico estendeu o papel para ela, enquanto Blanco recolhia a padiola. - Boa sorte, Carmem. Espero que ele melhore logo e aguardaremos sua ajuda...
- Boa noite, senhorita Rubio... - Blanco despediu-se acenando.
- Eu estarei no hospital amanhã à tarde, doutor Hurtado, e obrigada pela chance. Até logo, Blanco, e muito abrigada pela ajuda. Digam a Lúcia que lhe mandei um abraço. Querem que eu os acompanhe até a porta?
- Não é necessário, minha cara. Mas não se apresse, tem de zelar por seu amigo... 
Hurtado e Blanco sumiram pela porta e Carmem ainda escutou os passos deles seguindo pelo corredor, enquanto olhava a face pálida da figura enferma de Garcia Contreras. Ela pegou em suas mãos e recordou tudo que acontecera desde o momento do casamento desastroso. Nesse instante, ela lembrou de sua prima Constanza, de como devia estar triste por todo o acontecido. Pensou no seu irmão, que devia estar furioso, e sorriu sozinha, mesmo sabendo que meia dúzia de palavras nem sempre resolviam seus problemas com Álvaro. Carmem olhou atentamente para Garcia imaginando se ele estava dormindo ou simplesmente descansando. Não entendia porque o destino teria lhe reservado tudo aquilo.
- Senhor Garcia? - Carmem falou quase que sussurrando.
Ele permaneceu como estava. A respiração lenta, a face pálida, nem parecia aquele homenzarrão simpático e atencioso de antes, lembrava mais uma criança desamparada e indefesa agora.
Carmem percebeu que ele estava dormindo profundamente, então resolveu tomar um bom banho e tirar todo aquele sangue e aquele cheiro de morte de seu corpo. Estava com medo de deixar Garcia sozinho, mas por alguns minutos não teria problema. Foi até o seu quarto, que era ao lado do que estava hospedado Garcia, achou algumas roupas, toalhas e foi tomar banho, passando antes mais uma vez pelo quarto de Garcia, pra ter certeza de que estava tudo bem. Ela não entendia porque, mas olhar aquele homem ali, vivo, respirando, lhe dava vontade de sorrir, deixava-a feliz. Depois de tudo que havia acontecido, Carmem precisava mesmo era relaxar.
Ela chegou-se até a banheira coberta de azulejos espanhóis como tanto exigira sua tia, quando da reforma há alguns anos. Não se lembrava disso exatamente, mas seu velho pai ridicularizara tanto seu tio Fernandes pelo gasto para por água no velho casarão, que lembrava das conversas e daí olhava os finos azulejos lembrando-se de seu falecido pai.
Carmem torceu a torneira da banheira branca e viu a água jorrar lentamente para enchê-la. A água estava fria, mas depois de um dia tão intenso, não carecia mais de calor, apenas de tirar o sangue seco que a recobria. Tirou a roupa e se deitou na banheira antes que ficasse de todo cheia. Sentiu um alívio tão intenso, que chegou a soltar um suspiro. Os músculos dela relaxaram em conjunto, como se todo o peso do mundo fosse retirado de suas costas. A água lambeu seu corpo, retirando a sujeira e trazendo um frescor em meio ao calor do cansaço.
Os cabelos dançaram ao seu redor, enquanto ela submergia na banheira, fazendo um pouco da água transbordar. Suas costas apoiaram-se então na louça da banheira e seus braços nos beirais, enquanto ela esticava as pernas e colocava a cabeça deitada o suficiente para apenas seu nariz e olhos permanecerem fora da água. Uma das mãos pegou a grossa bucha de piaçava e o sabão e com uma placidez serena correu-a a arranhar levemente o corpo, libertando-o da sujeira que misturava-se à água. Fez-o por algum tempo, sentando brevemente para lavar os cabelos, mais um tanto da água transbordou. Recostou-se uma vez mais, deixando-se embalar brevemente por aquela tranquilidade. Paz, enfim...
Despertou tremendo de frio e com o corpo enrugado na banheira.
Assustada, Carmem percebeu que adormecera ali, não tinha noção do tempo que havia ali ficado, apenas sabia que se sentia muito melhor, ainda que o pescoço doesse um pouco pela posição. 
- Garcia! - Ela pensou. Havia esquecido dele. Agarrou a toalha vermelha com seu nome bordado em branco, secou o corpo rapidamente e pegou um vestido meio gasto, que estava na casa há algum tempinho. Quando saiu do banheiro, ainda com o toalha em mãos secando os longos cabelos lisos, foi caminhando apressada até o quarto onde estava Garcia.
Chegando à porta do quarto, Carmem viu Garcia ainda deitado, praticamente na mesma posição. A noite continuava lá fora podia ver pela janela. Não devia ter dormido muito, apenas cochilado. Aproximou-se alguns passos, entrou no quarto enquanto sentia a saborosa brisa da noite que vinha da janela. Ouviu a voz de Garcia, um murmúrio, que parecia vir do corredor agora. Antes que pudesse se sobressaltar, ouviu também um gemido:
- Caa.. Arm.. Mem?
Carmem se abaixou ao lado de Garcia e pegou em sua mão:
- Sim, senhor Garcia, estou aqui. Está sentindo dor? Como está se sentindo?
- O...O... On... De... E... Es.. Est..Amos?... - Garcia perguntou com dificuldade.
- Estamos na casa da minha família, perto do hospital. O senhor foi baleado, lembra-se? Fique tranquilo, essa noite cuidarei de você e logo pela manhã você verá seu amigo Carlos e todo mundo, está bem? Relaxe. Não tente fazer esforço. - Carmem sorriu.
Garcia esboçou um sorriso, que logo se esvaneceu. Na testa dele, gotas de suor se formavam: 
- Ca-Ca... Ca..Rrr..Mem... - Ele tenta sorrir uma vez mais. - Nã... Não... Te-tenho c...Como a... Grade-de... Ssss... Cer... Você é um anjo...
Carmem passou a mão na testa de Garcia com carinho e cuidado: 
-Tem como agradecer sim, se recupere logo, está bem? Agora não faça mais esforços...
- Há... Há... Uma... Uma coi... Sa... Que... Que preci-ci... So dizer... - Ele continuou tentando sorrir e ela sentiu o calor na testa dele ao passar da mão por ela.
- Se se sente tão aflito, fale senhor Garcia, mas acalme-se por favor, está bem?
A feição dele relaxou um pouco. O suor continuava a brotar na fronte de Garcia, enquanto o sorriso se descontraiu:
- Ho... Je... Eu vi... Senti... Que po-p...Pod... Dia te-ter pe-per-dido tu... Tudo... E... E se... Se... N... Não fo-fos-se po-por você... E-eu n-não est.... Estaria a-a-aqui... Voc...voc..cê é... é... é... Um an-anjo, Ca-Car..mem... - Ele ergue uma mão trêmula e vacilante que tenta estender até seu rosto.
Carmem sorriu mais uma vez e falou baixo ao ouvido de Garcia:
- Ouça, senhor Garcia, se acha tudo isto mesmo, relaxe, está certo? Pode ser perigoso se esforçar agora e não me agradeça tanto, afinal, se não fosse o senhor ter levado aquele tiro, quem sabe eu é que não estaria aqui. Descanse está bem? Ficarei aqui ao seu lado até amanhecer e Álvaro vir até aqui nos levar para a fazenda, onde estão todos. Ainda estou cuidando de você. - Ela deu um beijo doce na testa suada dele.
Quando os lábios sentiram o sabor salgado do suor dele, enfim as palavras escaparam livres dos lábios de Garcia Contreras: 
- Eu amo você...
Carmem ainda sorria, mas agora um tanto espantada.
- Senhor Garcia, está com febre e delirando. Tente dormir, está bem?
Ainda assim, Garcia Contreras não desistia, mas antes que tornasse a falar, Carmem Rubio ouviu os passos que enfim chegaram à porta: 
- Senhorita Rubio... - Veio a voz de Juan de trás da porta.
Carmem se espantou pensando o que estaria Juan a fazer àquela hora na porta, logo no momento em que Garcia estava delirando. Ou estaria ele dizendo a verdade? Carmem sentiu-se confusa, mas preferiu apenas sorrir para Garcia e falar com Juan, mesmo ainda de joelhos ao lado da cama:
- Sim, Juan, eu estou aqui, entre. Aconteceu alguma coisa?
- Gostaria de dizer pra senhorita que deixamos tudo arrumado depois que os doutores saíram. Estamos lá embaixo no quarto dos criados e vamos trancar tudo agora... - Disse o serviçal com olhar humilde, segurando chapéu com as mãos e olhando para baixo.
- Ah, claro, Juan, muito obrigada por tudo. Se precisarem de algo eu estarei aqui cuidando do senhor Garcia, é só vir até aqui me chamar.
Carmem olhou para Garcia, que a olhava com ar de quem precisava dizer algo. Ela sentiu algo que não tinha sentido antes, talvez apenas alívio por tê-lo salvo, por estar tudo indo bem. Ou talvez... Talvez... Bem, talvez ela não soubesse o que estava sentindo.
- Boa noite, senhorita. - Disse Juan partindo.
A jovem continuou a ouvir os passos dele seguindo pelo corredor até a escada, mas os olhos dela e sua mente estavam voltados para Garcia Contreras, esbaforido em seu esforço de falar:
- Nã... Não me... Me tome por l... Louco... Mas se... Se... Se est... Tou vivo... É... É... No esforço de... De... Con... Fessar Meu... Meu amor... Por ti... - A cabeça dele afundou-se pesada no travesseiro, enquanto o suor tornava a brotar-lhe farto no rosto. As sobrancelhas escuras e grossas dele estavam úmidas, enquanto os lábios sôfregos, ressecados.
Nesse instante, Carmem sentiu seu coração bater mais forte, e assustada pensou em tudo que estava acontecendo:
- Senhor Garcia, está febril e delirando. Acalme-se, está bem? Vou fazer algumas compressas e logo se sentirá melhor. 
Mais uma vez, Carmem o beijou na testa, que estava extremamente quente e saiu apressada, atravessando o longo corredor. Ela desceu as escadas e foi até a cozinha, onde apanhou água, vinagre, um pano seco e limpo, junto com uma bacia. Lembrando das recomendações do doutor, também um copo de água. Subiu o mais depressa que pode. Quando chegou novamente ao quarto, viu Garcia impaciente olhando para porta, parecia que havia ficado olhando para ali o tempo todo, esperando Carmem entrar e cuidar dele.
Os lábios dele se torceram num sorriso simples: 
- Es... Est... Tou bem... Fi-fi... Que tran... Qui... La... - E o sorriso se desfez, tornando à face dele o peso da dor.
Carmem sorria percebendo que ele queria parecer bem, mas rapidamente pegou o pano e a água. A jovem subiu a blusa dele e mesmo sem querer, acabou observando o corpo de Garcia, que era muito esbelto. Ele tinha alguns músculos visíveis apesar da bandagem dos ferimentos.
- Carmem, o que você está fazendo? - Ela perguntou pra si mesma, pegando o pano e colocando na barriga de Garcia. 
Ela aprendera com a sua avó, que a febre não pode ser curada pela testa e sim pela barriga e pelos pés. Lembrou-se também de que, quando ficava com febre, alguém sempre colocava meias com vinagre em seus pés, o que era bem desconfortável, mas fazia parar a febre rapidamente. Garcia acabou por aquietar-se e tornando os olhos para ele, ela percebeu que ele adormecera uma vez mais. O suor logo diminuiu, assim como o febre que cedeu.
Mais tranquila, Carmem pode observa-lo com o cuidado preocupado, enquanto ele serenizava sobre a cama. O sono pesava, fazendo os olhos cerrarem-se, enquanto um farto bocejo escapou-lhe.
- Talvez quando Garcia acordasse, ele parasse de dizer que a amava, afinal, nem a conhecia direito. - Pensou Carmem, que achava que se tudo não fosse tão trágico, seria até excitante e por que não dizer romântico? - Carmem, Carmem! - Ela dizia para si mesma várias vezes, nas quais olhava com outros olhos para Garcia.
Era belo o senhor Garcia afinal de contas. Mesmo ferido e empalidecido pela perda de sangue, Carmem lembrava-se bem do sorriso garboso com que a abordara na porta do casamento, enquanto ela aguardava entediada o início da cerimônia e tentava fugir do calor. Ele era alto e tinha uma elegância até mesmo nesse momento debilitado. O bigode fino e bem cortado, preto como as grossas sombrancelhas e os cabelos, agora, de todo desalinhados. Era nitidamente um estrangeiro, com seus jeitos europeus, Garcia Contreras, o que talvez a fizesse pensar enfim em ver as terras do Velho Mundo, como já oferecera seu tio Fernandes.
Uma vez mais, ela ergueu os olhos piscando-os com força para despertar da sonolência que pesava sobre a mente. Encontrou, despreparada, Garcia a encarando sorrindo. Em seguida, olhou pela janela e percebeu que estava amanhecendo.
- Senhor Garcia, está clareando, logo nós poderemos nos reunir aos outros na fazenda. Está se sentindo bem? - Logo colocou a mão em sua testa e percebeu que a febre havia baixado. - Sinto que a febre passou, em alguma ocasião lhe contarei o que o senhor delirou durante a noite.
Garcia manteve o sorriso, parecia ter sido removido o fardo que pesava sobre ele.
- Estou bem... Ainda dói e lateja um pouco aqui onde tomei o tiro, mas já estou melhor. E confesso estar um pouco com fome, mas não resisti a admirá-la nessa penumbra do amanhecer, minha heroína... Também gostaria de um pouco de água se não for abuso...
-Ah, Garcia, claro que não é abuso nenhum! Me perdoe, havia esquecido depois de tudo que você poderia sentir fome. Aqui tem um copo com água e eu vou até a cozinha preparar algo que você possa comer. Não queria lhe deixar aqui sozinho, mas se sentir algo chame, por favor, está bem? - Carmem deu novo beijo leve na testa dele, sabendo que se sentia fome, é porque estava melhor. Saiu.
Já no corredor o estômago dela lembrou-a de que comer lhe faria bem também. O gosto da manhã ainda ocupava sua boca. Quando começou a descer a escada, viu alguém saindo pela porta da frente. Imaginou ser Juan.
- Juan, você está aí?
A porta tornou a se abrir, quando ela estava na metade da escada e apareceu o rosto de Juan:
- Bom dia, senhorita Carmem. Estava indo até a fazenda chamar seu irmão e o senhor Carlos, como havia me mandado... - Disse o funcionário de seu tio em tom humilde e segurando o chapéu na outra mão que não abrira a porta.
- Ah, é claro Juan, como pude me esquecer disto! Obrigada. Por favor, Juan, não deixe mamãe vir junto. Ela é muito sensível, e os ferimentos do senhor Contreras ainda não estão tão bem cicatrizados. 
Juan concordou com a cabeça, colocou o chapéu e saiu.
Ela passou e foi em direção à cozinha para preparar um maravilhoso chá, que sua avó sempre fazia para ela, quando ficava doente. Lembrou-se mais de sua avó, a pessoa mais maravilhosa que Carmem já conhecera. Ela preparou também torradas, já que o pão não estava muito novo, levou também uma maçã e mais um copo de água. Achou que aquela era a alimentação ideal para alguém que estivesse em repouso.
Ao cruzar a sala vinda da cozinha, ouviu o barulho da batida na porta, um tanto abafada, além das palmas que se seguiram anunciavam que havia alguém lá fora:
- Ôôô de casa.. - Seguiu-se a voz masculina, sendo respondida por outra, que você reconheceu como a de Esteban.
- Bom dia, senhor delegado...
- Bom dia, homem. Don Fernandes está?
- Não, senhor. Ele está na fazenda desde ontem por causa da festa de casamento da filha dele, Dona Constanza com Don Carlos.
- E há alguém em casa ou estão todos lá?
- A Dona Carmem está aí...

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Elizabeth: 1

Londres - 1971 


- Ei, ei... Tá sabendo? Vai ao show? Uau, vai ser o máximo...

- Vou sim, estou muito animada para ir ao show... Que horas será mesmo?
- Já passa das nove... Estou com os ingressos aqui... Pink Floid, ai ai... Eu amo o David Gilmour, vai ser o máximo... - Ella sacudiu o panfleto na mão de ansiedade. - Mas acho melhor irmos, porque se não, não vai ter ingresso...
- A sua ansiedade é tanta que já se esqueceu que os ingressos já estão com você, mas vamos embora então...
- Eu ando fumando muita maconha mesmo... - Ella deu uma daquelas típicas risadas de quando esquecia as coisas. - Falando nisso, o que você arranjou pra gente se divertir lá? - Ela levantou-se e fechou a porta do quarto.
-  Vou me divertir do meu modo, você sabe que ando careta, depois do que aprontamos há alguns meses. Tive que me conter, mas se pintar algo estamos ai... - Elizabeth também deu uma risada, mas bem sarcástica.
- Beleza, beleza... Vamos então?
- Demorou, vamos logo...
As duas desceram as escadas para ir ao show. Da cozinha ouviram a mãe de Elizabeth chamar:
Já vão sair? Não querem comer alguma coisa antes, meninas?
- Mãe, não dá, já estamos com o tempo apertado. Você quer algo? - A jovem Elizabeth perguntou à amiga Ella.
A mãe saiu à porta da cozinha enxugando as mãos no avental. Ela estava um tanto descabelada e com ar cansado: 
- Não vão chegar tarde ou seu pai acaba com você...
- Pode deixar Dona G, vamos voltar na hora... - Brincou Ella.
- Nada de arranjar confusão... - insistiu a mãe.
- Sim, senhora, tchau, mãe... - Elizabeth revirou os olhos e partiu.
As duas saíram de casa e começaram a cruzar as ruas de Londres. Muitos carros circulavam pelas vias e um grande numero de pessoas ia em direção ao show na região de Wembley. Elizabeth e Ella foram cruzando as ruas um tanto misturadas à multidão. Os jovens que se dirigiam para a casa de shows conversavam, cantavam e deixavam um tanto desconfortável os mais velhos, que voltavam para seus lares. Chegando à porta do show, a fila já era grande.
- Caraca, Ella, a fila já esta enorme, vamos ter que dar um jeito de chegar até o palco, não quero ficar no fundão, é muito chato.
- Não te conto... Vem... - Ella saiu puxando a amiga pela mão na direção oposta à da fila. Logo as duas estavam circundando o prédio. Dobraram a esquina e Elizabeth já se sentia impaciente com a enrolação de Ella em lhe responder. Foi então que ela viu a entrada dos fundos, os seguranças e o pessoal do apoio entrando. - Vem, eu conheço um cara...
-Você é maluca mesmo, a gente vai acabar sendo presa. Você não disse que tinha ingressos? Bem, vamos nessa...
- Que nada, deixa de ser medrosa... - Nessa hora, as duas escutaram o barulho da platéia lá de dentro. - Tá vendo, vai começar...
Ella fez uma careta e piscou, puxando a melhor amiga novamente. Logo elas estavam diante de dois seguranças, que vestiam casacos pretos e calças jeans, eram altos e largos, mas isso não pareceu intimidar Ella que foi logo falando:
- Eu queria falar com o Richard Hewitt...
- Quem é você?
- Sou filha dele...
- Ãh... Desculpe, senhorita... Mas é que não pode entrar ninguém sem o nome na lista...
- Então mande alguém chamar meu pai oras...
- É que não tem ninguém e...
- Tudo bem, tudo bem. Eu espero, mas você vai ser demitido por isso... - Ella disse convicta e os dois pareceram nervosos.
- E ela quem é? - Um deles perguntou parecendo querer ganhar tempo.
- Minha amiga... Tudo bem, eu vou pela frente, mas daqui a pouco eu volto viu... - Ella virou-se ainda segurando a mão de Elizabeth, deu uma rápida piscada de olho e seguiu sem exitar. A amiga deu uma olhada rápida nos seguranças à medida que foram se distanciando.
- Ella, você é maluca mesmo. - Teve tempo de cochichar antes de ver os seguranças se entreolhando.
- Ah, você fala como se não estivesse acostumada... mas não fica olhando... - Ella murmurou.
- Ei! Ei! Senhorita Hewitt!!!
Ella parou, deu aquele sorriso maroto que Elizabeth conhecia bem e virou-se:
- Siiiiim?
- Perdoe-nos, pode entrar... E se puder não comentar nada com seu pai...
As duas voltaram sem perder tempo, enquanto Ella mantinha o ar vitorioso: 
- Fiquem tranquilos... - Ela deu um tapinha no ombro de cada um deles. - Mas espero que lembrem de mim da próxima vez.
Um dos seguranças abriu a porta sorrindo embaraçado e as duas amigas entram nos bastidores da casa de show.
- Uau, Ella, se você não fosse mulher te dava um beijo agora. Nem to acreditando, acho que estou dormindo ainda. E agora para aonde vamos?
- Bom, vamos achar um lugar escondido pra assistir o show e depois a gente pode tentar ir até os camarins... - Ella diz isso com um brilho nos olhos de excitação.
Quando elas abriram a pesada porta de aço no fim do corredor, depararam-se com uma espécie de saguão de entrada. Nele, diversas garotas, quase uma dúzia delas, que aparentavam ter pouco mais de dezoito anos, embora fosse difícil definir com tanta maquiagem que usavam, conversam entre si. Todas elas usavam roupas espalhafatosas e coloridas, com echarpes, óculos, botas, tudo com um ar de rock´n roll psicodélico. Algumas bebiam uísque e cerveja e praticamente todas fumavam. Havia uma certa névoa da fumaça no ar. Alguns espelhos e mesas decoram  ambiente e ao fundo haviam duas portas. Alguns carregadores de equipamento entravam e saíam pelas portas.
- Acredito que estas garotas fazem parte do show. - Elizabeth falou bem baixo para Ella ouvir. - Vamos ter que passar por elas e entrar numa destas portas ou você acha melhor perguntar?
- Eu acho que são só groupies mesmo. Sabe aquelas meninas que ficam se atirando nos músicos e tal? Eu acho que se só andarmos ninguém vai nem notar...
- Eu quero muito um autógrafo do David Gilmour. - Se animou Elizabeth tentando ser discreta e não chamar atenção.
- Achei que já tava doidona... - Ella riu da amiga se ser nada discreta. - Com sorte a gente consegue
até mais... 
Elas começaram a cruzar a sala e ninguém parecia se aperceber delas. Finalmente chegaram às portas e quando estavam entrando em uma delas, escutaram a gritaria e barulheira atrás delas.
- Espero que estes gritos sejam de fãs enlouquecidas. - Elizabeth disse se virando para ver o que era.
Ao virarem-se, elas viram quatro cabeludos entrando de calças jeans, jaquetas e camisetas. Junto deles vinha um cara mais velho com alguns papéis e gritando com outros dois mais jovens e magrelos que carregavam várias coisas. As garotas os cercaram e algumas delas abraçaram alguns deles, além de beijinhos muito carinhosos.
- São eles... São eles!!! - Ella parecia em êxtase.
- Vai lá, amiga, você é muito mais fã deles do que eu, te espero aqui... Vai logo! - Disse Elizabeth ainda um pouco intimidada com tudo ali.
Ella saiu correndo. No caminho, ela pegou uma echarpe plumosa sobre uma das mesas, era vermelha, e a colocou no pescoço. Sem pudores, Ella aproximou-se dos rapazes com dificuldade, enquanto Elizabeth assistia lá da porta, Ella empurrou uma das meninas e finalmente esbarrou em David Gilmour. Tirando o cabelo comprido e liso do rosto, ele a olhou com um ar de "quem é você", mas rapidamente já estavam conversando.
Enquanto isso, Elizabeth sentiu um toque em seu ombro.
- A garota é maluca mesmo... - Pensou consigo mesma, enquanto virou-se para ver quem a cutucava.
Ela se deparou com uma outra garota, que tinha o rosto quase todo coberto por óculos escuros largos, com aros dourados e bem espalhafatosos. O cabelo dela tinha vários tons de loiro e é ondulado, bastante volumoso. A garota tinha muita presença, como um Robert Plant de saias e usava um casaco de peles marrom amarelado, calças de couro marrons boca de sino e uma bata verde clara, além de fumar um cigarro.
- Quem é você gatinha? - A garota pôs a mão que tocara Elizabeth na própria cintura, soprou a
fumaça e deu um sorriso maroto, como se estivesse posando para uma foto.
- Oi... Sou apenas uma fã, estou esperando minha amiga que foi até ali tentar pegar um autógrafo, mas acho que ela já conseguiu... Desculpa se estou em seu caminho...
- Que nada, gatinha. - A garota puxou a fumaça. - Não precisa se desculpar e você não tá no meu caminho. Mas você não quer um autógrafo? Eles já vão subir no palco...
- Eu quero muito do David, mas com esta legião de fãs que esta em volta deles,vai ser impossível...
- Que nada. Deixa de ser tímida. - A garota pegou Elizabeth pelo braço e começou a arrastá-la na direção dos caras do Pink Floyd. - Qual seu nominho?
- Me chamo Elizabeth, mas realmente sou tímida, é melhor eu não ir la não...
Mesmo deixando o corpo pesado e resistindo, Elizabeth já estava ao lado de todos quando terminara de responder. A garota lhe sorriu um sorriso meigo e levantou os óculos como se fosse um arco sobre o cabelo antes de falar: 
- Deixa de ser bobinha, Beth. David?!! David!!!
David Gilmour parou de conversar com Ella e se virou para a garota, abrindo um largo sorriso, como se ela fosse alguém muito especial para ele: 
- Mas se não é a glamurosa Lucy Diamonds....
- In the sky, meu caro. Lucy in the Sky with Diamonds, primeira e única. Mas não sou eu a brilhar dessa vez...
Ella olhou para a amiga com cara de "quem é a doida", mas Lucy continuou falando e colocou Elizabeth entre eles:
- Essa aqui é minha amiga Beth e ela queria muito te conhecer. - Lucy tragou o cigarro.
- Olá Beth, é um prazer. - Disse David, que beijou as costas da mão dela e deu aquele olhar levantado ao fazê-lo encarando-a nos olhos.