sábado, 7 de novembro de 2015

Márcia: 1

Praga - 1901

- Por que esse ar tão sombrio?
- O que sentes, exatamente, ao ponto de lhe gerar tal sensação? Seriam estes meus olhos cansados ou alguma coisa em meu próprio ser que talvez eu ainda não tenha percebido? Mas, por favor, perdão, não gostaria de ter passado algum ar confuso...
- De modo algum.. não posso negar que vejo o cansaço nos teus olhos, mas também vejo um ar sagaz. - Disse o monsenhor com o ar sábio que tinham todas as palavras proferidas por seus lábios velhos e ressecados. - Uma jovem como você deve ter melhores companhias do que um velho como eu...
- A sabedoria é uma velha e boa amiga do tempo, certamente. - Márcia disse enquanto sorria levemente. - Não creio que as tenha, o que eu poderia julgar como sendo uma companhia mais adequada? Consigo observar fatos que alguns jovens simplesmente não compreendem, estão afogados em divertimentos tolos que a nossa atual sociedade tem a oferecer e deixam-lhe escapar os detalhes sutis que coexistem com o resto, mas acredito que talvez seja uma boa ideia nos aconchegarmos naquele café, o senhor aprecia a bebida? Eu sei, deve soar estranho ser convidado por uma mulher, espero que não veja isso como indelicadeza da minha parte. E não se preocupe, estou em boa companhia.
- De modo algum, minha jovem. - Retrucou o monsenhor aceitando o convite e tomando a direção do café. - Mas creio que irei tomar um chá, pois com a idade, já não é qualquer coisa que me desce bem ao estômago. E seu pai sempre foi um bom amigo, quase que um irmão, eu diria... Mesmo que tenha abandonado a Igreja, nunca deixou de ter Deus no coração. - O monsenhor sorriu como se lembrasse de boas coisas do passado. - E vejo em você esse mesmo excesso de inteligência que via nele. Mas diga-me, afinal, o que a trás até Praga?
- Ah o senhor sabe... - Márcia falou com a cabeça baixa e uma leve expressão triste. - Depois que ele faleceu, as coisas tornaram-se mais difíceis, principalmente para a minha mãe, o afastamento da igreja, bom eu concluo como a causa serem as pesquisas ousadas no trabalho dele, afinal a medicina sempre exigiu muito dos profissionais. Mas mesmo assim ele tinha Deus no coração, como o senhor mencionou. Ele estava fazendo umas pesquisas inovadoras, apesar de não entrar em detalhes com a minha pessoa. O excesso de trabalho enfraqueceu a sua saúde, bom, mas isso já fazem três anos. Vim até aqui por estas razões familiares, ele tinha uma propriedade aqui, creio que  senhor deve recordar, um pouco afastada da cidade, eu evitei vir antes por causa das lembranças. - O sorriso dela se tronou melancólico. - Mas com a doença de minha mãe, o resto dos assuntos familiares ficou sob minha responsabilidade, acho que ela, simplesmente adoeceu de tristeza, ela não vai conseguir superar a ausência dele, nem mesmo com a ajuda do tempo. O laboratório de meu pai ficava na propriedade, vou avaliar o que faremos com a casa e verei com a universidade em que ele dava aula se posso doar os livros de medicina dele para a biblioteca.
Quando ela terminou de explicar os motivos de sua vinda, já estavam sentados no café. O monsenhor fizera sinal ao garçom, que veio prontamente.
- Traga um chá para mim e um café para a senhorita...
- Sim, monsenhor. - Falou o jovem se retirando.
- Entendo. Lembro-me da propriedade. Está um pouco abandonada, mas tenho certeza que encontrará bom valor por ela. Posso pedir a um de meus secretários que a acompanhe até lá. Eu mesmo iria, mas tenho muitas obrigações clericais, afora o peso da idade. Com fé em Deus sua mãe há de se recuperar. - O velho religioso tentou dar um sorriso animador. - A universidade ficará satisfeita com a doação, afinal de contas seu pai foi um dos médicos mais... Inovadores... De nosso país. Irei sugerir, inclusive, que façam-lhe uma justa homenagem aproveitando sua visita...
- Aqui está. - Disse o rapaz entregando o café e o chá e deixando se perder um instante na beleza austera de Márcia, até que o pigarrear do monsenhor o lembrou de dar-lhes licença. Ela, por sua vez, demorou-se olhando para o interior da xícara de café.
- Realmente acredito que conseguiremos um bom valor para a propriedade. Bom, creio que o problema são os rumores folclóricos referentes ao local, sabe como as pessoas são supersticiosas. Certa vez, meu pai teve uma governanta trabalhando em sua propriedade que podia jurar que ele estava "brincando com os mortos" e estes rumores espalharam-se juntamente com outros. Eu até mesmo estava lendo ontem no jornal, falava sobre possíveis assombrações na casa, que falta de notícias para postarem em um jornal. Às vezes chego a pensar que existam pessoas que desejam prejudicar meu pai mesmo após ele ter morrido. Um homem tão bondoso e brilhante, que mesmo assim atraía pessoas invejosas. - Ela parou e deu um gole de café. - É uma vergonha, considerando a ciência que temos hoje, que as pessoas ainda acreditem em teorias pseudo-medievais. Meu pai era realmente muito religioso, mas aliava-se à ciência. Espero que o comprador não seja uma pessoa que acredita em tudo, ou demoraremos para vender a propriedade. Mas eu acho graça desta história toda... 
- Não se pode dar ouvidos a essas crendices populares, minha cara. - O monsenhor lembrou com um sorriso de total descrédito. - O que o povo fala... - Ele deu um pequenino gole no chá. - Não se escreve... Ao contrário do que pensam os jornalistas desse pasquins xinfrins... - O velho permitiu-se uma risadinha. - Certamente, que alguém de posses o suficientes para comprá-la não será influenciado por esses pueris contos campesinos, engraçadinhos nos melhores casos, débeis nos piores... - Ele deu outro gole. - O legado do seu pai nunca seria maculado por tais crendices...
- Ainda existem pessoas de razão neste mundo, nem tudo está perdido. - Márcia recuperou levemente o sorriso e mexeu o café lentamente com uma pequenina colher. - Pretendo em breve ir até a propriedade, mas e o senhor? Como estão os seus afazeres na igreja? Sempre que posso, procuro ir à minha cidade, é algo que faz realmente bem a mim, nada como um pouco de paz nesses dias mundanos  - Ela parou de mexer o café e depositou a colher no pires. - Levo a minha mãe quando vou e tem sido o melhor remédio que posso oferecer a ela, nem sempre posso dedicar meu tempo a cuidá-la, o senhor sabe, a vida de uma professora em uma escola feminina tem seus contratempos, mas gosto de exercer a profissão... - Deu, então, mais um pequeno gole de café.
- O trabalho enobrece a alma e louva ao Senhor, minha filha. Tenho certeza que várias famílias podem dormir em paz tendo as filhas bem educadas por uma professora tão digna. Quanto a mim, bem... O que pode dizer um velho bispo como eu? Cuido de meu rebanho, oro a Deus e tento manter Praga longe dessa política vil que se espalha por aí... Política desses trabalhadores libertinos, comunistas e ateus... - O monsenhor fez o sinal da cruz e uma cara de desprezo. - Mas como eu disse antes, não poderei acompanhá-la, mas não terei problemas em destacar um secretário para levá-la...
- Eu realmente compartilho do seu desgosto por esse tipo de cidadão amante de balbúrdia, acho que Deus na vida das pessoas já resolve a maioria dos problemas. O fato é que poucos possuem essa visão da realidade... Acho que já esta ficando tarde, creio que nós devemos nos recolher, mas aceito a sua ajuda referente ao secretário e agradeço pela sua preocupação. Não se preocupe, irei passar na sua igreja para ver o culto antes de ir, mas vou ficar aqui em Praga tempo o suficiente. Além de resolver estas questões burocráticas da propriedade de meu pai, quero ver a sua igreja e andar um pouco por esta maravilhosa cidade, muitas vezes me pego com saudades daqui...
- Não há cidade como esta no mundo, minha filha. - O Monsenhor declarou com satisfação, usando os braços velhos pra se levantar.
Eles pagaram a conta e Márcia o acompanhou de volta à Igreja de São Vito.
- Venha ver a missa pela manhã e logo depois pedirei que um de meus secretário vá contigo. Creio que Amadeu será a companhia ideal... Um homem sério e devoto... - O velho sorriu timidamente. - Vá com Deus, minha filha...
- Até amanhã pela manhã e muito obrigada pela ajuda e pela incomparável companhia...verei-o durante a missa...
Boa Noite.
Márcia virou-se, saiu a passos calmos e por um breve instante admirou o céu nublado. Ela atravessa a rua pouco movimentada àquela hora da noite e ao chegar ao lado oposto, admirou a Igreja de São Vito. Observou que o bispo já havia adentrado na igreja, virou-se novamente em direção ao hotel onde estava hospedada a poucas quadras dali.
Havia pouca gente pela rua naquele princípio de noite. Os mendigos foram ficando menos numerosos conforme Márcia se afastava da Igreja. Ao chegar ao hotel, no entanto, um homem que saía do edifício parou na frente dela impedindo-a de entrar.
- Com licença... - Ele disse tirando o chapéu e sorrindo. Era jovem, mas usava uma barba que dava ar mais velho e respeitável. - Eu estava procurando pela senhorita...

domingo, 1 de novembro de 2015

Carmem: 5

- Deixe-o aí no chão, com cuidado, até eu acender algumas velas, por favor. - Carmem acendeu lampiões e velas. Depois, ordenou aos capangas que levassem Garcia para um dos quartos de hóspedes no andar superior. - Doutor Hurtado, por gentileza, queira me acompanhar até lá em cima para prescrever uma receita.
Todos subiram sob a luz do candelabro de prata que Carmem tomara nas mãos, com as três velas acesas. Logo chegaram a um dos quartos, onde os homens colocaram Garcia Contreras sobre uma cama, sem arrancar dele um murmúrio sequer. Blanco e Hurtado a acompanharam, e enquanto o médico anotava o nome dos remédios em um papel, Blanco olhava ao redor.
Juan deu um passo à frente com a chapéu na mão e cara de cão sem dono: 
- Mais alguma coisa, senhorita?
- Sim, Juan, por favor, assim que clarear o dia, vá até a fazenda, e chame meu irmão Álvaro e sua esposa, e também Carlos, o noivo. Mande todos para cá. É tudo Juan, obrigada. - Carmem observou os dois saírem e depois se dirigiu ao doutor Hurtado. - Doutor, poderia me fazer o favor de explicar tudo?
- Aqui estão os remédios que ele irá precisar, Carmem. Irão ajudar com a dor. Os ferimentos devem ser lavados uma vez por dia e procure fazer compressas e dar a ele muita água. Comida apenas se ele recobrar totalmente a lucidez. Não o deixe se movimentar e evite muita confusão ao redor dele. É preciso que tome conta dele todo o tempo. - O médico estendeu o papel para ela, enquanto Blanco recolhia a padiola. - Boa sorte, Carmem. Espero que ele melhore logo e aguardaremos sua ajuda...
- Boa noite, senhorita Rubio... - Blanco despediu-se acenando.
- Eu estarei no hospital amanhã à tarde, doutor Hurtado, e obrigada pela chance. Até logo, Blanco, e muito abrigada pela ajuda. Digam a Lúcia que lhe mandei um abraço. Querem que eu os acompanhe até a porta?
- Não é necessário, minha cara. Mas não se apresse, tem de zelar por seu amigo... 
Hurtado e Blanco sumiram pela porta e Carmem ainda escutou os passos deles seguindo pelo corredor, enquanto olhava a face pálida da figura enferma de Garcia Contreras. Ela pegou em suas mãos e recordou tudo que acontecera desde o momento do casamento desastroso. Nesse instante, ela lembrou de sua prima Constanza, de como devia estar triste por todo o acontecido. Pensou no seu irmão, que devia estar furioso, e sorriu sozinha, mesmo sabendo que meia dúzia de palavras nem sempre resolviam seus problemas com Álvaro. Carmem olhou atentamente para Garcia imaginando se ele estava dormindo ou simplesmente descansando. Não entendia porque o destino teria lhe reservado tudo aquilo.
- Senhor Garcia? - Carmem falou quase que sussurrando.
Ele permaneceu como estava. A respiração lenta, a face pálida, nem parecia aquele homenzarrão simpático e atencioso de antes, lembrava mais uma criança desamparada e indefesa agora.
Carmem percebeu que ele estava dormindo profundamente, então resolveu tomar um bom banho e tirar todo aquele sangue e aquele cheiro de morte de seu corpo. Estava com medo de deixar Garcia sozinho, mas por alguns minutos não teria problema. Foi até o seu quarto, que era ao lado do que estava hospedado Garcia, achou algumas roupas, toalhas e foi tomar banho, passando antes mais uma vez pelo quarto de Garcia, pra ter certeza de que estava tudo bem. Ela não entendia porque, mas olhar aquele homem ali, vivo, respirando, lhe dava vontade de sorrir, deixava-a feliz. Depois de tudo que havia acontecido, Carmem precisava mesmo era relaxar.
Ela chegou-se até a banheira coberta de azulejos espanhóis como tanto exigira sua tia, quando da reforma há alguns anos. Não se lembrava disso exatamente, mas seu velho pai ridicularizara tanto seu tio Fernandes pelo gasto para por água no velho casarão, que lembrava das conversas e daí olhava os finos azulejos lembrando-se de seu falecido pai.
Carmem torceu a torneira da banheira branca e viu a água jorrar lentamente para enchê-la. A água estava fria, mas depois de um dia tão intenso, não carecia mais de calor, apenas de tirar o sangue seco que a recobria. Tirou a roupa e se deitou na banheira antes que ficasse de todo cheia. Sentiu um alívio tão intenso, que chegou a soltar um suspiro. Os músculos dela relaxaram em conjunto, como se todo o peso do mundo fosse retirado de suas costas. A água lambeu seu corpo, retirando a sujeira e trazendo um frescor em meio ao calor do cansaço.
Os cabelos dançaram ao seu redor, enquanto ela submergia na banheira, fazendo um pouco da água transbordar. Suas costas apoiaram-se então na louça da banheira e seus braços nos beirais, enquanto ela esticava as pernas e colocava a cabeça deitada o suficiente para apenas seu nariz e olhos permanecerem fora da água. Uma das mãos pegou a grossa bucha de piaçava e o sabão e com uma placidez serena correu-a a arranhar levemente o corpo, libertando-o da sujeira que misturava-se à água. Fez-o por algum tempo, sentando brevemente para lavar os cabelos, mais um tanto da água transbordou. Recostou-se uma vez mais, deixando-se embalar brevemente por aquela tranquilidade. Paz, enfim...
Despertou tremendo de frio e com o corpo enrugado na banheira.
Assustada, Carmem percebeu que adormecera ali, não tinha noção do tempo que havia ali ficado, apenas sabia que se sentia muito melhor, ainda que o pescoço doesse um pouco pela posição. 
- Garcia! - Ela pensou. Havia esquecido dele. Agarrou a toalha vermelha com seu nome bordado em branco, secou o corpo rapidamente e pegou um vestido meio gasto, que estava na casa há algum tempinho. Quando saiu do banheiro, ainda com o toalha em mãos secando os longos cabelos lisos, foi caminhando apressada até o quarto onde estava Garcia.
Chegando à porta do quarto, Carmem viu Garcia ainda deitado, praticamente na mesma posição. A noite continuava lá fora podia ver pela janela. Não devia ter dormido muito, apenas cochilado. Aproximou-se alguns passos, entrou no quarto enquanto sentia a saborosa brisa da noite que vinha da janela. Ouviu a voz de Garcia, um murmúrio, que parecia vir do corredor agora. Antes que pudesse se sobressaltar, ouviu também um gemido:
- Caa.. Arm.. Mem?
Carmem se abaixou ao lado de Garcia e pegou em sua mão:
- Sim, senhor Garcia, estou aqui. Está sentindo dor? Como está se sentindo?
- O...O... On... De... E... Es.. Est..Amos?... - Garcia perguntou com dificuldade.
- Estamos na casa da minha família, perto do hospital. O senhor foi baleado, lembra-se? Fique tranquilo, essa noite cuidarei de você e logo pela manhã você verá seu amigo Carlos e todo mundo, está bem? Relaxe. Não tente fazer esforço. - Carmem sorriu.
Garcia esboçou um sorriso, que logo se esvaneceu. Na testa dele, gotas de suor se formavam: 
- Ca-Ca... Ca..Rrr..Mem... - Ele tenta sorrir uma vez mais. - Nã... Não... Te-tenho c...Como a... Grade-de... Ssss... Cer... Você é um anjo...
Carmem passou a mão na testa de Garcia com carinho e cuidado: 
-Tem como agradecer sim, se recupere logo, está bem? Agora não faça mais esforços...
- Há... Há... Uma... Uma coi... Sa... Que... Que preci-ci... So dizer... - Ele continuou tentando sorrir e ela sentiu o calor na testa dele ao passar da mão por ela.
- Se se sente tão aflito, fale senhor Garcia, mas acalme-se por favor, está bem?
A feição dele relaxou um pouco. O suor continuava a brotar na fronte de Garcia, enquanto o sorriso se descontraiu:
- Ho... Je... Eu vi... Senti... Que po-p...Pod... Dia te-ter pe-per-dido tu... Tudo... E... E se... Se... N... Não fo-fos-se po-por você... E-eu n-não est.... Estaria a-a-aqui... Voc...voc..cê é... é... é... Um an-anjo, Ca-Car..mem... - Ele ergue uma mão trêmula e vacilante que tenta estender até seu rosto.
Carmem sorriu mais uma vez e falou baixo ao ouvido de Garcia:
- Ouça, senhor Garcia, se acha tudo isto mesmo, relaxe, está certo? Pode ser perigoso se esforçar agora e não me agradeça tanto, afinal, se não fosse o senhor ter levado aquele tiro, quem sabe eu é que não estaria aqui. Descanse está bem? Ficarei aqui ao seu lado até amanhecer e Álvaro vir até aqui nos levar para a fazenda, onde estão todos. Ainda estou cuidando de você. - Ela deu um beijo doce na testa suada dele.
Quando os lábios sentiram o sabor salgado do suor dele, enfim as palavras escaparam livres dos lábios de Garcia Contreras: 
- Eu amo você...
Carmem ainda sorria, mas agora um tanto espantada.
- Senhor Garcia, está com febre e delirando. Tente dormir, está bem?
Ainda assim, Garcia Contreras não desistia, mas antes que tornasse a falar, Carmem Rubio ouviu os passos que enfim chegaram à porta: 
- Senhorita Rubio... - Veio a voz de Juan de trás da porta.
Carmem se espantou pensando o que estaria Juan a fazer àquela hora na porta, logo no momento em que Garcia estava delirando. Ou estaria ele dizendo a verdade? Carmem sentiu-se confusa, mas preferiu apenas sorrir para Garcia e falar com Juan, mesmo ainda de joelhos ao lado da cama:
- Sim, Juan, eu estou aqui, entre. Aconteceu alguma coisa?
- Gostaria de dizer pra senhorita que deixamos tudo arrumado depois que os doutores saíram. Estamos lá embaixo no quarto dos criados e vamos trancar tudo agora... - Disse o serviçal com olhar humilde, segurando chapéu com as mãos e olhando para baixo.
- Ah, claro, Juan, muito obrigada por tudo. Se precisarem de algo eu estarei aqui cuidando do senhor Garcia, é só vir até aqui me chamar.
Carmem olhou para Garcia, que a olhava com ar de quem precisava dizer algo. Ela sentiu algo que não tinha sentido antes, talvez apenas alívio por tê-lo salvo, por estar tudo indo bem. Ou talvez... Talvez... Bem, talvez ela não soubesse o que estava sentindo.
- Boa noite, senhorita. - Disse Juan partindo.
A jovem continuou a ouvir os passos dele seguindo pelo corredor até a escada, mas os olhos dela e sua mente estavam voltados para Garcia Contreras, esbaforido em seu esforço de falar:
- Nã... Não me... Me tome por l... Louco... Mas se... Se... Se est... Tou vivo... É... É... No esforço de... De... Con... Fessar Meu... Meu amor... Por ti... - A cabeça dele afundou-se pesada no travesseiro, enquanto o suor tornava a brotar-lhe farto no rosto. As sobrancelhas escuras e grossas dele estavam úmidas, enquanto os lábios sôfregos, ressecados.
Nesse instante, Carmem sentiu seu coração bater mais forte, e assustada pensou em tudo que estava acontecendo:
- Senhor Garcia, está febril e delirando. Acalme-se, está bem? Vou fazer algumas compressas e logo se sentirá melhor. 
Mais uma vez, Carmem o beijou na testa, que estava extremamente quente e saiu apressada, atravessando o longo corredor. Ela desceu as escadas e foi até a cozinha, onde apanhou água, vinagre, um pano seco e limpo, junto com uma bacia. Lembrando das recomendações do doutor, também um copo de água. Subiu o mais depressa que pode. Quando chegou novamente ao quarto, viu Garcia impaciente olhando para porta, parecia que havia ficado olhando para ali o tempo todo, esperando Carmem entrar e cuidar dele.
Os lábios dele se torceram num sorriso simples: 
- Es... Est... Tou bem... Fi-fi... Que tran... Qui... La... - E o sorriso se desfez, tornando à face dele o peso da dor.
Carmem sorria percebendo que ele queria parecer bem, mas rapidamente pegou o pano e a água. A jovem subiu a blusa dele e mesmo sem querer, acabou observando o corpo de Garcia, que era muito esbelto. Ele tinha alguns músculos visíveis apesar da bandagem dos ferimentos.
- Carmem, o que você está fazendo? - Ela perguntou pra si mesma, pegando o pano e colocando na barriga de Garcia. 
Ela aprendera com a sua avó, que a febre não pode ser curada pela testa e sim pela barriga e pelos pés. Lembrou-se também de que, quando ficava com febre, alguém sempre colocava meias com vinagre em seus pés, o que era bem desconfortável, mas fazia parar a febre rapidamente. Garcia acabou por aquietar-se e tornando os olhos para ele, ela percebeu que ele adormecera uma vez mais. O suor logo diminuiu, assim como o febre que cedeu.
Mais tranquila, Carmem pode observa-lo com o cuidado preocupado, enquanto ele serenizava sobre a cama. O sono pesava, fazendo os olhos cerrarem-se, enquanto um farto bocejo escapou-lhe.
- Talvez quando Garcia acordasse, ele parasse de dizer que a amava, afinal, nem a conhecia direito. - Pensou Carmem, que achava que se tudo não fosse tão trágico, seria até excitante e por que não dizer romântico? - Carmem, Carmem! - Ela dizia para si mesma várias vezes, nas quais olhava com outros olhos para Garcia.
Era belo o senhor Garcia afinal de contas. Mesmo ferido e empalidecido pela perda de sangue, Carmem lembrava-se bem do sorriso garboso com que a abordara na porta do casamento, enquanto ela aguardava entediada o início da cerimônia e tentava fugir do calor. Ele era alto e tinha uma elegância até mesmo nesse momento debilitado. O bigode fino e bem cortado, preto como as grossas sombrancelhas e os cabelos, agora, de todo desalinhados. Era nitidamente um estrangeiro, com seus jeitos europeus, Garcia Contreras, o que talvez a fizesse pensar enfim em ver as terras do Velho Mundo, como já oferecera seu tio Fernandes.
Uma vez mais, ela ergueu os olhos piscando-os com força para despertar da sonolência que pesava sobre a mente. Encontrou, despreparada, Garcia a encarando sorrindo. Em seguida, olhou pela janela e percebeu que estava amanhecendo.
- Senhor Garcia, está clareando, logo nós poderemos nos reunir aos outros na fazenda. Está se sentindo bem? - Logo colocou a mão em sua testa e percebeu que a febre havia baixado. - Sinto que a febre passou, em alguma ocasião lhe contarei o que o senhor delirou durante a noite.
Garcia manteve o sorriso, parecia ter sido removido o fardo que pesava sobre ele.
- Estou bem... Ainda dói e lateja um pouco aqui onde tomei o tiro, mas já estou melhor. E confesso estar um pouco com fome, mas não resisti a admirá-la nessa penumbra do amanhecer, minha heroína... Também gostaria de um pouco de água se não for abuso...
-Ah, Garcia, claro que não é abuso nenhum! Me perdoe, havia esquecido depois de tudo que você poderia sentir fome. Aqui tem um copo com água e eu vou até a cozinha preparar algo que você possa comer. Não queria lhe deixar aqui sozinho, mas se sentir algo chame, por favor, está bem? - Carmem deu novo beijo leve na testa dele, sabendo que se sentia fome, é porque estava melhor. Saiu.
Já no corredor o estômago dela lembrou-a de que comer lhe faria bem também. O gosto da manhã ainda ocupava sua boca. Quando começou a descer a escada, viu alguém saindo pela porta da frente. Imaginou ser Juan.
- Juan, você está aí?
A porta tornou a se abrir, quando ela estava na metade da escada e apareceu o rosto de Juan:
- Bom dia, senhorita Carmem. Estava indo até a fazenda chamar seu irmão e o senhor Carlos, como havia me mandado... - Disse o funcionário de seu tio em tom humilde e segurando o chapéu na outra mão que não abrira a porta.
- Ah, é claro Juan, como pude me esquecer disto! Obrigada. Por favor, Juan, não deixe mamãe vir junto. Ela é muito sensível, e os ferimentos do senhor Contreras ainda não estão tão bem cicatrizados. 
Juan concordou com a cabeça, colocou o chapéu e saiu.
Ela passou e foi em direção à cozinha para preparar um maravilhoso chá, que sua avó sempre fazia para ela, quando ficava doente. Lembrou-se mais de sua avó, a pessoa mais maravilhosa que Carmem já conhecera. Ela preparou também torradas, já que o pão não estava muito novo, levou também uma maçã e mais um copo de água. Achou que aquela era a alimentação ideal para alguém que estivesse em repouso.
Ao cruzar a sala vinda da cozinha, ouviu o barulho da batida na porta, um tanto abafada, além das palmas que se seguiram anunciavam que havia alguém lá fora:
- Ôôô de casa.. - Seguiu-se a voz masculina, sendo respondida por outra, que você reconheceu como a de Esteban.
- Bom dia, senhor delegado...
- Bom dia, homem. Don Fernandes está?
- Não, senhor. Ele está na fazenda desde ontem por causa da festa de casamento da filha dele, Dona Constanza com Don Carlos.
- E há alguém em casa ou estão todos lá?
- A Dona Carmem está aí...